No tempo que me resta

No tempo me resta posso florir o chão, arejar a gaveta, soltar a fera. No tempo me resta posso descortinar medos, sonhos, passos. No tempo que me resta posso virar Deus, estrela, universo, grão de areia, Everest, fogo, gelo. No tempo me resta posso chorar, chorar, chorar. No tempo que me resta posso ser gozo, vômito, suor, cocô, pus, meleca de nariz. No tempo que me resta posso tocar meus frutos, minha alma, minha raiz, meu céu. No tempo que me resta posso ser Papai Noel, Saci, Fada Madrinha, Bruxa Malvada, Exu, Buda, Maomé, Jesus. No tempo que me resta posso voar, mergulhar, escalar, sumir. No tempo que me resta posso alinhar, costurar, esgarçar, rasgar, arrematar. No tempo me resta posso fazer pratos deliciosos, gororobas horrendas. No tempo me resta posso ser admirado, amado, ovacionado, vaiado, respeitado, usurpado. No tempo me resta posso ter pneumonia, dor de cabeça, herpes, psoríase, febre . No tempo me resta posso virar estátua, badulaque, capacho, abajur, fechadura. No tempo me resta posso escrever coisas belas, pertinentes, reflexivas, memoráveis. No tempo que me resta posso fecundar, gestar, parir. No tempo que me resta posso virar saudade, lembrança, verdade, fé. No tempo que me resta posso ser pai, filho, marido, irmão, colega de trabalho, tudo. No tempo que me resta posso virar ermitão, andarilho, guru, cigano. No tempo me resta posso vibrar, reluzir, respingar, remoer. No tempo me resta posso ser coração, ossos, mão, pé, cabelo, dente. No tempo me resta posso ser vazio, oco, seco, mofado, encardido. No tempo me resta posso ser lindo, forte, valente, herói. No tempo me resta posso ser beco, estrada, atalho, ribanceira, oásis. No tempo me resta posso tropeçar, dar topadas, pegar caminho errado. No tempo que me resta posso entender tudo, explicar tudo, confundir tudo. No tempo me resta posso escolher, filtrar, apurar. No tempo me resta posso desprezar, cuspir, ignorar. No tempo me resta posso flagrar, surpreender, suplantar. No tempo que me resta posso virar dádiva, sobra, lixo, encalhe. No tempo que me resta posso ser homem, mulher, bicho, pedra, flor. No tempo me resta posso enganar, ludibriar, roubar. No tempo que me resta posso ficar cego, surdo, mudo. No tempo me resta posso lambuzar, entorpecer, alucinar. No tempo me resta posso acovardar, prender, enferrujar, chicotear. No tempo me resta posso ser Nacional Kid, Bobo-da-Corte, Coringa, Super-Homem, Peter-Pan, Thor. No tempo que me festa posso brilhar, encantar, reinar, perpetuar. No tempo que me resta posso morrer pouco, morrer muito, morrer não morrendo. No tempo que me resta posso ser mau, cruel, nefasto, desprezível, odiado, espezinhado. No tempo que me resta posso abraçar, beijar, compartilhar, acolher, acudir. No tempo que me resta posso pirar, surtar, enlouquecer.

Ou no tempo que me resta continuar fazendo tudo isso, como tenho feito no tempo que passou.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 17/02/2019
Código do texto: T6577158
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