PORTA ERRADA
 
“Quando o relógio da vida avança além dos 60 anos, algumas peças do cérebro podem começar a enferrujar. Mas um problema em especial é capaz de acentuar dramaticamente esse declínio, dizimando áreas como o hipocampo e o córtex, responsáveis pela memória, aprendizado e capacidade de planejamento. Estamos falando da doença de Alzheimer, condição em que uma parte dos 100 bilhões de células nervosas e dos 100 trilhões de conexões entre elas, as sinapses, é destruída de maneira lenta e progressiva. Esse arrastão faz com que as lembranças — e, com o tempo, outras funções cognitivas — caiam literalmente no esquecimento.”¹
 
     Ultimamente, a minha visão de mundo e das coisas que nos envolvem, têm-se mostrado, quase sempre, ao contrário do que realmente são.
     Há pouco tempo, ao chegar à casa de um amigo, notei que a maçaneta do portão estava do lado contrário e, qual não foi a minha surpresa saber que tal maçaneta nunca mudara de lado.
     Com o hábito, já há muito adquirido, de dormir, quase sempre, a cada noite, em um lugar diferente, às vezes acabo colidindo com as paredes, uma espécie de confusão mental que, amiúde tem me tirado o próprio sono.
     Por precaução, ando tomando uma espécie de complexo vitamínico, receitado por uma médica amiga, para prevenir, além dos esquecimentos, outras funções vitais do organismo.
     É triste, aliás, muito grave mesmo, encontrar com uma pessoa, que se mostra amiga, íntima até, e você ficar, com cara de tacho, na frente dela, sem saber quem ela é. Outras vezes, ter a palavra na ponta da língua e ficar vasculhando a memória, sem resultado algum. O nome de uma música, de um livro, de um filme parece-nos confiscados a um lugar sombrio, ermo, antigo...
     Penso que as sinapses funcionam como pontes a levar as lembranças de um lugar a outro. É deveras triste, caminhar tanto para chegar a lugar nenhum, ainda mais, perdido no meio do nada, sem saber para onde ir.
     Dizem que a memória é a casa da saudade. “Algumas vezes escolho ir até lá, mas em outras sou tragado, assustado, sem nem ao menos perceber, para dentro dela.
     Em algumas dessas visitas inusitadas estou num cômodo que rouba um sorriso dos meus lábios. Foi em fração de segundos que me descobri ali, experimentando uma sensação gostosa que rompe em riso e, no auge da alegria, faz brotar uma lágrima, motivando-me a celebrar a vida, escrevendo a alguém “só” pela gratidão de tê-lo em minha história.
     Outras vezes, o lugar que visito não é tão agradável… Ou o é, não sei… É estranho quando isso acontece, o coração aperta, revela a incerteza de como cheguei até lá, e não sei muito bem o que vou encontrar. Esse cômodo, por mais que tenha tanta vida e me brinde com doces bolhas de boas memórias, traz a certeza do nunca mais. É aí que as lágrimas se multiplicam e molham os lábios, que teimam em sorrir, ao olhar o bom que houve.
     Não é possível escrever com gratidão, restando uma oração silenciosa, que parece me transportar dali e me fazer descansar em paz.
     Celebrar a vida, dessa vez, é perseguir o exemplo e fazer nascer sementes… Flores e frutos que não morrerão, já que a vida fala mais alto que a morte.
     Nesse entra e sai da memória, em que você não escolhe fato, momento, pessoa ou lugar, descobre-se, enfim, que a vida, a cada instante, deve ser celebrada. Aumentam-se, assim, os cômodos, eternizando aquilo que é precioso e mantendo aquecido e afinado o canto do coração.” ²
 

Vinhedo, Primavera de 2013.
 
 Citações:
¹ Goles contra o Alzheimer - Thaís Ferreira
²  A casa da saudade – Coelho Neto
 
 
Benevides Garcia
Enviado por Benevides Garcia em 22/02/2019
Reeditado em 27/05/2019
Código do texto: T6581071
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