Memória de Velho
 
          Depois que você passa dos setenta, de algumas lembranças que voltam à memória você não sabe dizer se realmente aconteceram, se foram sonhos que teve, ou se apenas voos da imaginação. Isso vem acontecendo comigo com algumas lembranças da minha infância e juventude. Também não é pra menos: meus vinte anos estão a meio século atrás e minhas peripécias de moleque há mais de sessenta. A impressão que tenho é que vivi outras vidas. É nítido em minha mente, por exemplo, o terror de ser encurralado por uma enchente, eu criança em companhia de meus pais. Posso ver um rio de lama invadindo a rua onde estávamos e meus pais correrem comigo no colo para se abrigarem na plataforma de uma estação de trens. Perguntei sobre isso à minha mãe, mais de uma vez, e ela me garantiu que esse fato nunca ocorreu. Outra lembrança recorrente é a de eu estar me equilibrando sobre um rolete de madeira com os pés apoiados numa prancha também de madeira. Mas essa realmente aconteceu. Minha irmã atestou e disse mais: “Quando crianças nós brincávamos de fazer apresentações de circo. Um dos números era equilíbrio sobre a prancha no rolete. No primeiro número você fazia um bêbado vestido com o imenso terno do papai, uma garrafa num dos bolsos e um copo no outro. Cambaleando dramática e espalhafatosamente sobre o rolete você retirava toda a roupa de adulto e no final forçava um tombo cômico de onde você saía com o copo ainda cheio na mão. O segundo número sobre o rolete era a dois. Eu, com a roupa de baliza de desfile, fazia flexões e alongamentos sobre seus joelhos, passava por baixo de suas pernas, subia nos seus ombros e fazia diversos malabarismos. No final, pulávamos os dois da prancha, curvando-nos para agradecer à plateia. ” Uma outra memória também tem a ver com equilibrismo: meu pai apareceu um dia em casa com um monociclo, o que nada mais é do que uma bicicleta de uma só roda e que, portanto, não pode ser chamada de bi-cicleta. Eu me vejo hábil sobre o selim dessa monocicleta indo ao empório ou à padaria comprar coisas a pedido de minha mãe ou simplesmente passeando pelas ruas da vila onde eu morava. Nem meu pai nem minha mãe puderam confirmar a presença dessa bugiganga em casa, posto que essa anamnese se manifestou recentemente e meus pais já não estão mais por aqui. Tenho claras as imagens não somente do monociclo, mas também da técnica para subir nele e sair pedalando rua afora. A incerteza dessas memórias me levou a testar minha antiga perícia sobre uma roda só.

          A propósito, estou escrevendo no meu tempo ocioso no hospital, acamado com um braço e duas costelas quebradas...
HFigueira
Enviado por HFigueira em 06/03/2019
Reeditado em 06/03/2019
Código do texto: T6590805
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