O lugar da arte

Meu amigo Sebastião me contou. Nos idos de 80, numa cidade do Vale do Jequitinhonha, o Belchior foi fazer um show e só apareceram vinte e poucas pessoas. Na manhã daquele dia, o grande compositor e cantor passeara pelo centro da cidade, entrara no mercado municipal e ninguém o reconheceu... Quinze anos depois, eu fui à mesma cidade, numa festa. O show de uma banda de axé lotou a avenida. O conteúdo: uma letra de duplo sentido, com três linhas, repetidas vinte vezes e garotas com danças sensuais.

* * *

Sexta-feira, cansaço e sono. Do Butantã para o centro, o ônibus trafega sacolejante. A Cidade Jardim é uma avenida que sempre me pareceu um tanto tenebrosa. Me dá medo de assombração. Faria Lima. Termômetro: 11 graus, em pleno mês de setembro. São Paulo é maluca. Às 23h40 as ruas se agitam dos trabalhadores que voltam da jornada e dos jovens que vão para a balada. Todos querendo que a noite dure e que a madrugada caia.

Desço antes da Paulista. Aguardo o “Parque Dom Pedro”. Entrando no ônibus, fico um tanto encabulado pelo impacto de ver o cobrador com um violão na mão. Sento-me e passo a contemplar aquela cena inusitada, cômica se não fosse mágica.

Ele toca Raul. Ouro de Tolo, O dia em que a terra parou, Meu amigo Pedro, Metamorfose Ambulante... Tento cantarolar Medo da Chuva com ele, mas, mesmo sem chuva, o medo não me deixa. O receio de que alguém perceba me contém. Ele se expõe; os passageiros o olham com ar de reprovação; cada um que passa pela roleta. Só eu e um senhor mais atrás curtimos a música.

Desci do ônibus mais atordoado que quando entrei. Aquela invasão da arte num espaço tão hostil, aquele sorriso do cantor, aquela manifestação na contramão de tudo que se espera em uma lotação...

Dias depois, vinha do Butantã de novo. Como era o mesmo horário, desci no mesmo ponto perto da Paulista e peguei a mesma linha. Por sorte, o motorista também era o mesmo. Eu tinha gravado aquele semblante sofrido de 50 anos de vida e 65 de trabalho. Mas o cobrador era outro.

Um tanto curioso e decepcionado, resolvi arriscar um comentário com o motorista. “E aí? O senhor não gostou da música do cantor?” Fui infeliz. Por falta do que dizer, melhor é não dizer nada. É um ditado sábio! “Não foi isso”. Respondeu o motorista enquanto começava descer a Augusta. “Na verdade eu gostava das músicas”. Resolvi insistir no meu método fracassado: “Ah! Então foi o dono da empresa...”. Nova resposta negativa. “Não foi o dono da empresa; na verdade, foram os passageiros que reclamaram. Chegou num ponto que começaram a ligar pra firma”.

Então eu soube que fora feita uma campanha informal contra o cobrador-cantor. Contou o motorista que uma senhora chegara mesmo a dizer para a atendente da empresa: “É um absurdo! Aquele rapaz não tem o que fazer? Ao invés de trabalhar, fica cantando aquelas músicas horrorosas!”. Eu entendi tudo e resolvi não fazer mais perguntas. As pessoas que foram ao show do Belchior também se calariam.

Chegando ao meu ponto, desci do ônibus e, em homenagem àquele cobrador, foi cantarolando pela rua: “O dia em que a terra parou, o dia em que a terra parou”...

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 25/03/2019
Reeditado em 25/03/2019
Código do texto: T6606833
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.