Era só um ouvinte que ele queria

“Acho incrível a capacidade de mergulhar no mundo do outro, na intimidade do outro, no dilema, no problema e na loucura do outro...
É, e é isso que gente faz quando ouve a canção do outro...” Patrícia Rezende


Conheci o senhor José numa sala de espera. Moço desconfiado, mantinha a cabeça baixa e ficava olhando fixamente para as mãos, marcadas por uma doença que insistia em descaracterizar a sua cor verdadeira (vitiligo). Vez ou outra olhava para os lados como se esperasse um sinal verde para entrar num mundo todo seu. E eu dei.
Por trás daquele rosto cansado, abatido havia um homem forte e a sua história diria isso em poucas palavras. Nascido no meio rural, desde criança tinha um sonho: servir ao exército. Todas as brincadeiras da infância eram uma espécie de teste de resistência. Foi enterrado no barro, ficou preso numa armadilha de gravetos, foi alvejado por estilingues e tudo em nome do treino.
Aos 16 anos conheceu Maria, nome de Santa e foi assim que surgia a sua família sagrada. José foi pro exército aos 17 anos, mas não conseguia esquecer Maria, era algo que o provocava a cada visita aos pais. Numa dessas, acabou se declarando para Maria que, por pressa de ver seu amado partir, deu-se a oportunidade de entregá-lo seu maior tesouro. Meses depois o veredicto: Maria estava grávida.
Seu José, aquele menino sonhador do exército, com apenas 19 anos, decidiu honrar sua palavra de homem e não deixar Maria sozinha. Foi ter com seus superiores. E para sua surpresa e decepção O major o incentivou a esperar a sua carreira decolar e depois voltar para os braços de Maria, já que perderia a oportunidade de crescer, mas sua consciência não permitia. Então foi se despedir dos amigos.
Voltou para o interior apenas para fugir com Maria para a capital, era uma espécie de vergonha para a família. Lá, sem nenhum tostão, conheceu na rodoviária a Josefa, que lhe deu um fogão velho de apenas uma trempe e algumas roupas e sapatos, após contar sua história. E Maria cozinhava em latão de margarina que pediam na padaria ao lado. Depois de 3 meses conseguiu um bico numa empresa de fogos de artifício e lá, por sorte, foi achado por um maquinista da rede que o trouxe para o interior.
Naquela manhã seu José parecia nervoso, ansioso, Maria tinha crises de depressão há dois anos, era bipolar. Estava sob efeito de medicamentos. Teve um surto. Depois de 46 anos juntos, tendo passado por situações avassaladoras, estava de pé, e acompanhava sua esposa nas sessões com o médico. Chegou a dizer, mais de uma vez que não tinha nada quando começou e que não deixava Maria jamais porque comeu compele sem pratos. Há duas semanas que Maria estava com médico novo, e respondendo bem aos medicamentos, não dormia o dia todo mais e já havia voltado a cozinhar para a família, isso era uma grande evolução.
Mas o que, de fato atormentava aquele homem era um portão. Depois de trabalhar 33 anos e seis meses na rede ferroviária tinha juntado uns troquinhos e construiu uma grande casa nun terreno outrora adquirido, mas era fundos. De três anos pra cá, outros inquilinos construíram no lote à frente e colocaram um portão altíssimo. De lá pra cá não se ouvia mais ninguém chamando e não era possível ver quem chegava. Ele resolveu levar o conflito para a justiça: quero seja retirado o portão. O advogado, exigiu dele 3000 mil pilas pra iniciar o serviço e ele deu. Meses depois, o julgamento foi marcado e o portão agora não era mais uma escolha, mas sim uma decisão arbitrária. Por ética, Sr José resolveu não citar o nome do amigo de classe que faturou o seu cachê, mas disse que o juiz era comprado e que ainda ia ver a justiça ser praticada, afinal nem drogas e nem reduto de pornografias era o seu corredor. E como se incansável fosse na causa em prol da liberdade queria novamente pleitear o direito. Então o perguntei em voz calma e como quem escolhe um lado, qual era a maior preocupação dele e ele sem titubear falou que era não conseguir ouvir as pessoas do lado de fora o chamar. Olhei para ele e como uma mãe quando oferta colo para criança ofereci uma sugestão simples e prática: coloque um interfone. Ele meio surpreso, meio apressado respondeu que não tinha pensado nisso. Emendando a conversa, respirou fundo e soltou uma frase de frustração sobre a escolha da filha quanto à engenharia e não ao direito: era uma decepção. E pra terminar fez um adendo na saída: queria ter uma filha feito você.
Naquele momento pensei que a escolha da engenharia fosse para ele algo não sublimado, e antes de tecer uma oratória sobre as escolhas de cada um, resolvi questioná-lo o por quê e para minha surpresa a resposta foi dada com lágrimas no olho e um lenço na mão a enxugá-las: porque você me ouviu sem interromper e sem me julgar.

Eu não saí do lugar, fiquei inerte. Um flashback veio me tomando e fui apanhando de cada cena da vida como se fosse um chicote. A cada cena um flagelo. Era só um ouvido que ele queria. Era só um ouvinte... Era só isso e não tinha.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 26/03/2019
Reeditado em 18/05/2019
Código do texto: T6608429
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