Se não doer não é de verdade

A sentença me acompanhou vida afora mesmo sem que eu, pelo menos conscientemente, lhe ligasse muita importância. Se não doer não é de verdade. Era um velho matuto que aprendi a admirar desde meus primeiros anos de vida, pela sabedoria ímpar que o distinguia na pequena sociedade em que vivíamos. Um homem escravizado por um sistema injusto, contudo, soberbo na ciência de sua condição de analfabeto, ilustrado nas relações de amizade e de negócios, orgulhoso de dominar a arte da marcenaria, ofício então bastante valorizado. Um Epicteto anônimo com a mesma ideia de que “uma vida feliz e uma vida virtuosa são sinônimos. Felicidade e realização pessoal são consequências naturais de atitudes corretas”.

Gastava eu boa parte de meu tempo assistindo-o em sua bancada de trabalho cortando, encaixando e entalhando peças de madeira, num delicado trabalho que requeria muita paciência. Não se incomodava com a presença tímida, apesar de curiosa, do menino em sua oficina. Parecia mesmo gostar, a julgar pelo quanto conversava comigo, normalmente me ensinando lições que me seriam úteis mais tarde quando tivesse que enfrentar os inevitáveis percalços da vida.

Dizia-me que o amor só é verdadeiro quando dói. Mais ainda! Que a medida da dor é a medida do amor. Decerto ele calculava a extensão das aflições que naquele tempo já atenazava meu pobre coração de menino. O pai distante, numa incursão infrutífera a São José dos Campos atrás de um emprego que não deu certo, a morte da irmã mais nova aos dezesseis meses de vida, a mãe muito atarefada com as trouxas de roupa que mitigariam nossa fome, a irmã adolescente servindo de doméstica na casa da senhora rica e bondosa que no Natal viria a me dar um lindo caminhãozinho de presente.

O amor seguiu a doer vida afora. A gente envelhece e o amor não se definha enquanto estiver doendo. E naqueles dias em que a dor se torna mais aguda a gente percebe que está amando ainda mais. Em todas as épocas, mesmo nos dias mais felizes vividos junto dos meus, eu percebia o inevitável escoamento do tempo, que um dia haveria de indubitavelmente roubar-me aqueles momentos, transformando-os em lembranças alegres que iriam aos poucos se perdendo nas brumas distantes.

Vigie a qualidade do seu amor, menino. Dizia meu sábio amigo. Amor que não dói não é de verdade.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 27/03/2019
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