Quem lê nunca está sozinho

Livrei-me dos suores do travesseiro há bem duas horas. Há anos optei por uma noite mais curta em detrimento de meu necessário descanso. É que os meus fantasmas e demônios só me podem alcançar se me apanham na horizontal. Como durmo bem no início da noite, quando acordo, já suficientemente refeito por algumas horas de sono, ergo-me satisfeito. Tomo um banho demorado, barbeio-me meticulosamente, porque enquanto toda a cidade dorme, acredite, o tempo não passa. Faço um café forte e constato que ainda não se manifestam os primeiros pássaros madrugadores.

Agora na cozinha do miserável tugúrio, meu adorável castelo do qual guardo as melhores lembranças de minha desenxabida existência, exaspero-me com a lentidão do giro do planeta. Como a miserável luz incandescente pendente do teto é insuficiente para meus olhos cinquentenários de ledor voraz, além de injustificadamente cobrada pela CEMIG a peso de uma tira do couro da cacunda deste pobre cliente sem outra alternativa, estou eu com o espesso livro aberto, encostado à janela à espera da luz do dia que é infinitamente melhor e totalmente gratuita. Já apenas alguns pardais largam no ar o seu chiado desinteressante e monótono, quase irritante.

Enquanto espero que o carro do sol avance no horizonte arrastando seus albores maravilhosos neste verão agonizante, esse “um pintor passageiro, colorindo o mundo inteiro, derramando seus azuis”, devaneio entre a poesia de Lampedusa e a de Alceu. Viagem de sonho só possível aos poetas, navegantes incautos dos mares tempestuosos de todas as épocas. Hora morta de tempo perdido no lusco-fusco da manhã. Ciente de que a areia da vida se escoa pelo pequeno orifício da ampulheta luto inconscientemente em infindáveis pesquisas mentais, para decifrar a incógnita de Gogue e Magogue.

Mais uma xícara de café e sou tomado por uma lembrança muito lúcida. Um vizinho octogenário, o Seu Juca, figura sólida e positiva da minha infância. Introspectivo, jamais me dirigiu palavra além de um Deus te abençoe! que naquele tempo pedir a bênção era a expressão máxima do respeito e de cogente resposta, sobretudo se a famigerada ampulheta houvesse interposto entre os dois sujeitos o intervalo de sete décadas, como era o caso. Seu Juca, morador de uma casa grande de assoalho de tábuas corridas, dividida em duas, cuja uma outra tornou-se fonte de renda como casa de aluguel cedida a Luiz Nortista. Punha-se, Seu Juca, todas as tardes de pé, recostado ao janelão de madeira, a fazer as suas duas horas diárias de leitura. Imagino que teria muito mais respostas do que eu as tenho sobre Gogue e Magogue.

Normalmente estávamos a jogar bola no grande largo gramado defronte á casa do Zé Bentinho, um dos centros de convivência da turma da Rua da Várzea, hoje Praça Mário Ernesto da Silva, enquanto não havia ali montado um parque de diversões itinerante, ou um pequeno circo, ou ainda um acampamento de ciganos. Eu, moleque franzino, medroso e de cabelos arrepiados, o último a ser convocado para qualquer um dos lados da “pelada”, aguardava minha vez sem muita vontade de jogar, observando o digno ancião, na sua janela, a manusear o seu livro. Eu já tinha noção do escoamento da areia pelo ínfimo orifício, mas a parte superior da minha ampulheta ainda estava muito cheia.

Naquele tempo eu já pensava numa verdade expressa recentemente por um pensador de nosso tempo: “quem lê nunca está sozinho”.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 30/03/2019
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