Campo de Santana

O Campo de Santana

Meu avô João Martinho tinha uma expressão pouco comum para designar as conjunturas desordenadas, os eventos anárquicos ou mesmo as simples algazarras de crianças, situações estas em que mais o ouvi usá-la. Quando nos excedíamos, meus primos e eu, em nossas reinações no grande terreiro varrido de sua casinha de roça, ele, viúvo solitário dado aos trabalhos domésticos, deixava a lida no fogão de lenha e chegava à porta da cozinha, com um pano de prato no ombro e gritava para fora — Ei! Que campo de santana é esse aí?

Que campo de santana é esse? Imagino que meu avô não soubesse a procedência daquela expressão enquanto eu, ainda menino, embora conhecedor do seu mais pleno sentido nos contextos em que o velho a empregava, já me inquietava por não alcançar, no meu parco entendimento de menino, a sua origem. Eu já sabia que essas peculiaridades de uma língua não nascem do nada.

Pude compreender enfim, quando poucos anos mais tarde, depreendi dos livros de história o nome da praça onde foram culminar os conflitos entre o legislativo e o executivo do primeiro reinado, isto é, entre o Parlamento e Dom Pedro I. Na manhã do dia 6 de abril de 1831, uma manifestação popular é organizada, liderada por homens como Odorico Mendes, Borges da Fonseca e Vieira Souto, em conjunto com chefes militares. Mais de três mil pessoas reúnem-se no campo de Santana, exigindo a recondução do ministério anterior. É que no dia anterior, o imperador havia demitido o ministério, então composto só por brasileiros, e nomeado um novo, logo apelidado de “ministério dos marqueses”, cujos integrantes eram seus auxiliares mais próximos, todos detentores de títulos nobiliárquicos.

A revolta foi deflagrada tão logo a notícia se espalhou. Circulava ainda o boato de que os chefes liberais, como Nicolau de Campos Vergueiro e Evaristo da Veiga teriam sido presos. No entanto, mesmo após intensa negociação, Dom Pedro permanece irredutível. Paira no ar a ameaça de que, caso ele não ceda, ao amanhecer o povo e a tropa formarão um novo governo. Em 7 de abril, com sua sustentação política completamente corroída, o imperador entrega sua carta de abdicação e deixa o palácio de São Cristóvão rumo a Portugal.

Se tivesse a infelicidade de ainda estar por aqui, acompanhando esses tempos de campanha eleitoral, em que candidatos digladiam, explorando cada qual as mazelas do adversário, já que são escassas as próprias qualidades a expor. Enquanto amigos se ofendem, famílias se dividem, ovelhas trocam marradas na defesa de seu lobo preferido, como se não fossem continuar a alimentar a alcateia pantagruélica seja qual for a que assumir o poder, meu avô certamente repetiria a pergunta: — Que campo de Santana é esse?

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 01/04/2019
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