“Somos reféns de um crime onde o alvo somos nós (a arma está apontada), mas atirando em todos os sentidos. São as várias facetas de uma arma que atinge de forma circular, dinâmica. Se correr o bicho pega, se ficar ele come. E já engoliu.”

A atividade minerária foi um berço. Filha de trabalhador aposentado de mineração, irmã de dois trabalhadores (no mesmo ramo na atualidade), cunhada de outro. Sobrinha de pelo menos seis que trabalham ou trabalharam também. Prima de pouco mais de uma dezena, atuantes na Mineração. Fui técnica em Mineração, um dos primeiros empregos. Formação esta que trilhei por ter orgulho do trabalho que era realizado pelo meu pai. Mas, outros caminhos me tomaram (e que bom). Minha subsistência e de meus familiares foi baseada nos lucros desta atividade que, na região onde moro desde que nasci, era a que mais gerava emprego e renda, além de garantir determinada "estabilidade", como ocorreu com meu pai até completar os famosos "25 anos" de trabalho com extração mineral.
Sou filha, irmã, prima e sobrinha da Mineração em todas as suas vertentes. Sou da família. Não escolhi, mas colhi os frutos plantados pela família que nasci. Corre nas veias. A Mineração garantiu que esta nossa família fosse criada e preservada, do ponto de vista econômico e material. No tempo em que palavra valia mais que contrato, vi meu pai sair de dia e de noite em busca de melhores condições. Ele trabalhava sob o regime de revezamento de turno e quando acordávamos, ele ia dormir e vice-versa. Meu pai era o "trabalho em pessoa" vivia pra isso. A ponto de, quando da greve de funcionários de uma empresa para qual prestava serviço, se submeter a título de convocação, a pelo menos 72 horas ininterruptas de atividade. Na época, esta era uma questão de honra, afinal, jamais deixaria um compromisso. Meu pai era do tipo "Caxias" de dia e de noite, na chuva ou no sol, na tristeza e na alegria. Jamais computou-se em registros, uma única falta injustificada. Mas mesmo assim, quando o seu tempo foi completado (sinal da aposentadoria) a empresa para qual deu a sua própria vida, sorrateiramente o desligou, sem ao menos dizer obrigada, adeus. E isto ocorreu também com diversos funcionários que saíram da empresa na mesma época. Era o início de uma nova era, fora do tão sonhado ambiente de trabalho que fazia do meu pai um homem honrado, comprometido e digno. Lembro quando entrei nesta área. Desde o primeiro dia. Olhava para aquelas minas e via uma possibilidade de ascensão. Aprendi ali a analisar materiais, conheci de perto uma concentração, aprendi a enxergar por um microscópio o percentual de ferro numa amostra, apaixonei pelo beneficiamento de minério e fiz amigos que entre chegadas e partidas deixava um pouco de si. Via tudo como um sonho deslumbrante, a ponto de sequer perceber os impactos da atividade minerária no meio ambiente e em minha saúde. Quando saia de lá cheia de poeira e percebia que caminhões também faziam isso, com impacto ainda maior, não entendia que aquilo era um recurso natural não-renovável expirando. Não que não tenha aprendido isto na escola, mas a paixão era maior que a racionalidade e a necessidade de estar no mercado de trabalho, também.Os anos foram passando e o discurso de um "desenvolvimento sustentável" virou o hit da moda. Todo mundo falava disso, mas já era bem tarde, muito já se havia perdido. E foi assim que aprendi a entender que o meio ambiente não era só o ambiente em si, mas estávamos lá, neste meio. E passei a observar com outro olhar a atividade minerária e as reais consequências para o futuro. Olhava para uma montanha que aos poucos ia diminuindo, diminuindo, até que... Respirei fundo e decidi: é preciso repensar... Não pode ser "natural" que uma montanha se apague em tão pouco tempo... Só tem mais uma! Por que escrever tudo isso? Apenas para dizer que não sou contra a atividade minerária, menos ainda, que as empresas tenham lucro, mas sim, que o lucro seja uma consequência e não um objetivo. O rompimento das barragens de rejeito em Mariana e Brumadinho são só mais um dos tantos outros "acidentes" que marcam com tinta fúnebre, uma história de tragédias no mapas geográfico de Minas Gerais. Não foram poucos os desastres deste tipo, desde 1986 (Itaminas), que causaram danos ambientais irreversíveis e centenas de mortes. É como passar uma borracha virtual em vidas completas, inteiras. É apagar do mapa um distrito, uma cidade, uma parte de um Estado, um pedacinho de uma país. Herculano Mineração, Rio Pomba Cataguases, Mineração Rio Verde... São algumas das empresas que tiveram suas barragens rompidas e, com isso, amargaram as estatísticas de morte em desastre e de impactos ambientais de grande impacto em Minas Gerais. Por isso, quando vejo a postura de uma empresa como a Samarco (que na verdade de Samarco nada tem) e a Vale, apenas como vítima deste contexto, não posso calar. Se foram os tremores de terra, se foram as ausências de manutenção adequada, se foi a omissão do Estado o que deu causa, ao mínimo, poderia/deveria ser feito pelas empresas, intervenções para diminuir os impactos gerados por um rompimento (responsabilidade objetiva). Qual era o plano de contenção, como a empresa pôde amenizar as consequências, havia possibilidade de plano de emergência que previsse alteração do curso para diminuir as consequências desastrosas por quilômetro? Lembro-me de um episódio, há pouco mais de seis anos, no Golfo do México, em que houve um vazamento de petróleo que contaminou os rios e lagos, a empresa, responsável pelo manejo, foi incisiva quanto às ações que diminuiriam os danos. Além do mais, a empresa foi responsabilizada, desde o primeiro minuto, já que, sabedores dos impactos possíveis, assumia o risco da atividade. Foi um desastre gigantesco, mas houve, ao mínimo a superação por meio de ações efetivas. Eram dezenas de ambientalistas, engenheiros, biólogos ali, unidos para salvar o ambiente. Mas no Brasil... Só vejo uma mídia "sensacionalista" -quando convém vem- e "omissa, aventureira e parcial (a quem paga a conta), empresas que "não tem dados suficientes para falar do assunto", um governo "amolecido" e um povo triste, doente, sem esperança. Agora digam, Bento Rodrigues e Brumadinho foram as mais afetada, ganharam maior visibilidade, mas e os outros lugares: Paracatu, Barra Longa, Rio Doce, Governador Valadares e tantos outros? Quem vai pagar a conta destes rejeitos, se tocar o mar? Quem vai levantar a bandeira desse povo depois que tudo virar lembrança? Muitos sequer terão condições de pleitear na justiça os seus direitos, outros já preferem morrer diante da dor de perder o lar, que não será substituído por uma casa nova. Mas, enfim, a mineração como atividade econômica de extrema necessidade para o povo (principalmente desta região que pouco diversificou a economia) precisa ampliar seus horizontes e enxergar que atrás de uma montanha existe vida... E que não há dinheiro que pague!
Neste contexto, aparece Congonhas, onde nasci e fui criada. Uma cidade pacata do interior de Minas que vive as contradições de ser tipicamente urbana, na área central; histórica nos altos e economicamente viável (no quesito indústria), na parte baixa. Só quem tem a oportunidade de viver e conviver neste ambiente entende esta disparidade singular: é luxo, desordem, espiritualidade e divindade tudo num mesmo espaço e ao mesmo tempo.
De um lado o Centro Histórico feito à mão, coisa de artista. O maior acervo do grande Mestre Aleijadinho.
Do outro lado, uma cidade que cresceu desordenadamente e que em virtude da ausência de um planejamento urbano adequado acabou abarrotando alguns espaços e suprimindo outros. Vejo ruas apagadas pelo tempo, casas amontoadas, estilo barroco pouco preservado. 
E, por fim, uma cidade cuja economia está ancorada na instalação de empresas minerárias que garantiram, durante anos, a sobrevivência de muitos. Mas, como todo recurso natural não-renovável (uma vez retirado não se repõe) e vão ficando as marcas das feridas provocadas na terra, na água e no ar.
Das consequências das atividades de extração mineral e dos impactos sociais a que se vinculam na minha terra natal está a desordenada barragem de rejeitos, instalado estrategicamente no centro urbano.
Os noticiários veicularam nos últimos dias, a triste notícia das condições das barragens de rejeito pelo Brasil, atestando, de modo especial, a vulnerabilidade das instaladas na cidade. Para nós Congonhenses, duas frentes se apresentam: a primeira baseada na experiência de Mariana, em Bento Rodrigues e de Brumadinho, da fragilidade do contexto e da ausência de penalizações que garantam, ao mínimo, a aplicação dos princípios da dignidade humana; a segunda, é de que calejados, nos vemos diante do potencial desastre e de mãos atadas (não saímos do lugar e não temos garantia de fiscalização e responsabilização) esperamos que algo aconteça, já que a empresa envolvida tem um pé na situação descrita anteriormente (se legalmente não é a mesma).
E agora? O que fazer diante desta inércia conclusiva por questões de interesses individuais sobrepondo os coletivos? A quem recorrer se o descrédito é geral em relação aos que nos representam no poder? Como usar os recursos disponíveis para agir como cidadão?
O Ministério Público acena para a retirada de 2500 famílias do entorno, depois de análise feita por peritos isentos; o prefeito suspende atividades escolares da região, no entorno; a empresa Companhia Siderúrgica Nacional (que ao contrário da VALE está no vermelho) atesta a segurança da barragem. E o cidadão comum fica à mercê desta briga de gigantes sendo apenas deslocado de lá pra cá, e adoecendo com esta insegurança que só terá fim se houver um desastre, fora disso, tudo é especulação.
Estou com uma péssima sensação de que tudo tem a tendência (natural) de terminar mal, mesmo sabendo que ainda existem Sandovais, Vitarellis, Marcelas, Vivianes e tantos outros que não se calam (calaram)... É desafiador, mas que venha a esperança! Um Brasil de todos, mas só para alguns.

“A espetacularização transforma a mineração num monstro engolidor de sonhos, mas os recursos postos são apenas uma ação da natureza para subsistência humana. O que faz da ação um crime é a ganância subsidiada pelo capitalismo selvagem que faz da terra um mar rejeitado capaz de arrastar histórias e  apagar do mapa regiões, impregnando na terra, sem lenço, sem documento um corpo que dela tratava enquanto alguém enriquecia. E não era ele...”

 
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 01/04/2019
Reeditado em 01/04/2019
Código do texto: T6612621
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