O dia em que o gato parou o ônibus

Eis que o ônibus parou, sob pedido desesperado de um jovem. No estranhar de tal, também o fiz, curioso. Logo se viu o inédito e hilário: o motorista saiu do banco e deu lugar ao passageiro. Não para que lhe ocupasse o ofício, e sim o procurasse - o gato - que se escondera embaixo do painel, entre pedais e fios.

Ônibus se aglomeravam em fila, atrás do dito veículo. Pessoas nervosas proferiam impropérios. Mas o jovem se detinha apenas naquilo: a procura pelo felino.

Mais gente se me reunia ao lado: "O que foi?"; "O que o rapaz procura, meu Deus?"; "É um gato!"; "Mas como?"; "Como ele entrou ali?"; "Como ele vai sair?".

O tumulto se engrossava. Hora de pico, cidade imensa. O acontecido rasgava ao meio a funcionalidade do existir de tantos. De muitos lugares do Brasil. A se apertar no ônibus, rumo à casa. Ao descanso, ao brevíssimo refazer das forças. Para a nova jornada de trabalho no vindouro madrugar.

E o jovem se estendeu ao chão, chamou o gato pelo nome - Kelvin -, tentou tateá-lo entre câmbio, embreagem, freio e tapete. Em vão. O peludo sumira.

Tempo ido já muito, sensata voz sugeriu que se acalmassem. Todos. O gato não sairia se a bagunça não parasse. Ele estava assustado. De fato. Era-o. O motorista, de obediente, afastou-se. A turba se aquietou. O jovem, então mais calmo, chamou de novo o estimado bichano. E eis que ele surgiu, com pelo arrepiado, olhos arregalados. Rabo levantado. O suspense nos tomou. Pegá-lo-ia o dono ou não?

O gato se aproximou, solene e receoso. Retornava, enfim, ao seguro da mão do dono. Este o recebeu, após exílio tão sofrido. Era o encontro. O afeto. O alívio. Uma salva de palmas ecoou dentro e fora do ônibus, abafando a buzina de lotações furiosas aguardando passagem. Alguns por satisfação; outros por comemoração; outros, até, por emoção, com o lacrimejar de olhos quase igual ao de sexta anterior, quando o final da novela parara o país.

O jovem desceu. O gato seguro, em segurança. O ônibus seguiu seu roteiro presumido. Espalhamo-nos, cada qual para o seu canto, no anonimato da metrópole. A aguardar e a temer outra cena que revire ponta-cabeça o modo de vida urbanóide que nos condiciona.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 08/04/2019
Código do texto: T6618910
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