Não foi nada

Sinceramente, nunca consegui enxergar na vegetação uma espécie de sujeira. Mas pela vida inteira tentaram me convencer disso, desde os tempos de menino quando eu frequentava o sítio de meu avô materno na região dos Córregos, quando se promoviam na redondeza animados mutirões para limpeza dos caminhos. Os moradores circunvizinhos, usuários das estradinhas rurais, precisavam cuidar pessoalmente da manutenção das mesmas, vejam que as coisas não mudaram tanto quanto a gente pensa. Tornavam-se dias festivos aqueles, normalmente sábados, em que se dividiam trechos do caminho para carpir o capim, a vassoura, o carrapicho-focinho-de-boi, o picão e outras plantas indesejadas que teimavam em vicejar pelo leito das azinhagas. Lembro Vovô reunindo os sertanejos para o trabalho que acabava sendo mais um divertimento como toda ação comunitária, inda mais aquelas que sempre acabavam com um bom cozido de costela de boi com mandioca acompanhado de um esquenta-rabo. “O caminho está muito sujo”, ele dizia. Eu olhava e só conseguia enxergar um magnífico tapete verde com arabescos em diversas tonalidades, mais a graça de algumas florezinhas, como as roxas do cipó rasteiro a que chamavam de “malícia”, de espinhos tão pequenos e numerosos que abriam rasgos sangrentos nas canelas desavisadas.

Todo esse exórdio nostálgico e enfadonho me ocorre nesta tarde de sexta feira quando, ao chegar em casa, a mulher me mostra o capim crescendo nas fendas entre o asfalto e o cimento do passeio, bem como nos dois buracos deixados no mesmo por ocasião da sua feitura para o plantio de duas árvores, o que nunca aconteceu, onde agora avançam impávidas duas enormes touças. Bicho danado é mulher! Posso jurar que jamais veria a sujeira daquele capim se ela não houvesse me mostrado. Aos meus olhos a inofensiva gramínea brotou agora. Posso jurar que não estavam ali de manhã quando saí para o trabalho. “Amanhã você precisa carpir a frente da casa.” Pronto arranjei um problema para o final de semana que prometia certo refrigério. Pensei com certo alívio: não temos uma enxada. Arrisquei uma justificativa pra fugir daquele embaraço: “o Euzébio tem uma equipe cuidando disso, meu amor. Vai ver como na segunda feira vai estar tudo limpinho”. “Vai estar se você limpar amanhã”.

O sábado amanhece com o sol arrebentado mamonas. Virgem Maria! Meu primeiro pensamento foi para o famigerado capim. Mas me chega um comunicado pelo WhatsApp, que um amigo teve um enfarto de madrugada e não está mais entre nós. “Nossa, meu bem! estive com ele ainda ontem. Estava bem de saúde. Inclusive carpia uns tuchos de capim que brotaram na frente de sua casa”. Ela me dirige um olhar enviesado e vai pro salão, que tem horário agendado. Resolvo dar um giro para me inteirar melhor do ocorrido com o amigo. Encontro a turma no Bar do Zé Preto lamentando a perda e tomando uma gelada para disfarçar a tristeza, acabo dilatando o tempo ali um pouco. Quando volto pra casa ela tenta debalde, com as mãos enluvadas, arrancar o capim. Não tem jeito, entrego-me à tarefa maçante e inútil.

Até que não é tão difícil, vou arrancando pela raiz, com as mãos mesmo, uma touça e outra até chegar à última, num daqueles buracos destinados às árvores, antes porém que eu possa ataca-la vejo assomar na esquina o amigo recém falecido, constato que está mais vivo que nunca, decerto um seu homônimo é quem levara a pior. Sempre prestativo, vai chegando e arrancando, não sem algum esforço, a última moita. Atira-a no monte que já se formara no asfalto e do qual terei que me desfazer. Numa careta mostra-me as mãos tomadas de uma massa amarelada e muito mal cheirosa. Ele havia atacado aquela em que os cães da rua deixavam seus excrementos. “Não se queixe.” Eu disse a ele. Vá lavar as mãos e depois as erga para o céu. Isso aí não foi nada perto do que te aconteceu essa madrugada.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 09/04/2019
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