JUCA E DECO

Juca e Deco, primos vindos de duas prendadas irmãs casadas com bem sucedidos fazendeiros nas cercanias rurais da cidade de Carlos Chagas/MG, não levavam jeito para outras atividades que não tocar roça. Herdaram de seus pais, cada um, bons quinhões de terra interligados, separados apenas por cerca. Juca plantava milho, feijão, cana, mandioca e arroz de várzea, enquanto Deco se dedicava à criação de gado leiteiro, sendo um dos mais fortes fornecedores de leite para os Laticínios Mucury.

Por insistência e boa vantagem financeira, terminaram vendendo para o alemão Heico a fração mais bonita de suas terras. Uma gleba de vinte alqueires, composta de frações das terras de Juca e Deco, tornando-as não mais fronteiriças. Na verdade, os primos nunca fizeram uso daquelas bandas, consideradas inadequadas para o plantio de grãos e para pastagens, devido ao relevo acidentado, com muitas aflorações rochosas de granito. Contudo, um admirável vale cortado por cursos de águas cristalinas que jorravam das pedras, serpenteavam em correntezas e caíam formando lindas e sonoras cascatas.

O alemão encantara-se com aquele brinde da natureza. Migrara ao Brasil para livrar-se das encrencas sociais comuns no período pós-guerra. Experiente criador de ovinos em seu país, chegou por aqui trazendo como esposa a jovem Lauren, de beleza a causar suspiros, incomparável na região. Nos seus vinte e pouco anos, resplandecia a imagem de uma perfeita bonequinha de louça, como diziam as bocas de cobiça.

Heico conduzia sua fazenda de ovelhas e suínos com notáveis técnica e capricho. Coisa próxima da perfeição. Nela edificou casa residencial de bom gosto, canalizou água corrente de boas fontes, implantou curral, pocilgas, aprisco, cochos, pastagens, espaços para ordenha, vacinação, tosa etc. Até pequeno matadouro constava de seus espaços. O manejo também era destaque profissional, com anotações sobre peso, rendimento, datas de reprodução, vacinação etc. Tudo com base na experiência e nos ensinamentos que colhia de sua biblioteca particular, trazida da Alemanha.

Como capricho adicional, construiu uma pequena capela com torre e nela pendurou um belo sino, herança de seu avô, que trouxera no navio. Lauren fazia questão de anunciar a chegada de cada dia com fortes badaladas. A fazenda, por isso, ficou conhecida por Vale do Sino.

O alemão só não contava com as agressivas doenças tropicais, nunca dantes experimentadas. Pegou malária, esquistossomose, doença de chagas e outros males. Dr. Pedro Barbosa, famoso médico de Carlos Chagas, pelejou, mas não o conseguiu salvar. Em suma, Lauren ficou viúva, com uma bem montada fazenda de criação sob sua responsabilidade.

Mesmo sem a habilidade de seu falecido marido, tocava suas posses contando com os serviços de alguns experientes funcionários e com o que conseguira aprender com Heico. Fazendeira bonita e trabalhadeira, não lhe faltavam visitas de olho grande, sempre dissimuladas em ajuda gratuita e espontânea.

Juca e Deco faziam parte dos que sonhavam em compartilhar cama e sonhos com Lauren. Tinham bom perfil para tanto. Solteiros, nunca se acharam comprometidos matrimonialmente com suas pouco duradouras teúdas, mães de um ou dois incertos filhos que lhes pediam bênção como pai. Além disso, aquelas terras já lhes haviam pertencido e pouco custaria resgatá-las.

Mesmo antes da separação de suas terras, Juca e Deco quase não se visitavam, embora sempre vistos juntos com copo na mão no boteco de Zilmar ou saboreando almoço na pensão de Lorinha, onde fazendeiros, médicos e comerciantes locais “batiam ponto”, principalmente às sextas-feiras quando era servida tradicional buchada com linguiça.

Curiosamente, Juca e Deco engoliam em seco para não falarem sobre a intenção pessoal de conquistar Lauren. Cada um armava o plano a seu jeito. A estrada de acesso a suas fazendas era a mesma que bifurcava exatamente na entrada da propriedade de Lauren. Tanto um como outro ao passarem por aquela encruzilhada paravam o jipe, enchiam-se de paixão e embeveciam-se ao achar poesia em cada detalhe da paisagem. Não lhes faltavam ciúmes, ao verificar se algum estranho por lá acostara.

O tempo passava. Os negócios de Lauren mergulhavam em fracasso. Ela mesma deixara escapar a algumas amigas sua vontade de vender a propriedade e retornar à Alemanha, fato que animou a dupla de primos. Silenciosamente no íntimo de cada um, corria a proposta de recompra do vale, se possível com a proprietária dentro, mais o marcante sino. Todavia, ambos não extravasavam nem compartilhavam seus desejos. Cada um passou a armar uma treita de como e quando abordar a viuvinha para se declararem.

Deco pensou em levar-lhe, pela manhã, um ramalhete de flores colhidas pessoalmente no campo, ainda úmidas de orvalho para motivar o início da conversa. Juca tinha um plano mais ousado e ainda mais romântico. Cumpriria o rito dos finos ladrões de mulher: far-lhe-ia uma visita no anoitecer da lua cheia, conduzindo sua antiga, mas recuperada, charrete puxada por um belo par de cavalos manga-larga. Convidar-lhe-ia para um passeio ao luar pelos campos. Sob essa atmosfera, pediria sua mão em casamento. Comprara até aliança e novo encordoamento para seu inativo violão.

Pela cabeça de cada um passava a tormentosa possibilidade de perder o pulo e essa muda disputa. Sentindo a competição, já pouco se falavam, mas continuavam amigos. Os goles no boteco de Zilmar ficaram mais raros. Almoçavam na Lorinha, mas limitando a prosa aos negócios.

Juca mandara repintar a charrete e preparar os cavalos. Porém, faltavam mais de duas semanas para a noite de lua cheia. Como segurar a espera, correr o risco, sabendo que seu primo concorrente poderia se antecipar e ganhar o jogo? Não suportou a agonia por mais de três dias. Sob a escuridão da noite de lua nova, selou os dois cavalos manga larga que puxariam a charrete, vestiu roupa engomada, descolou um antigo paletó branco e galopou.

Lauren deitara-se há poucos minutos, levantara-se com o relinchar dos cavalos. Surpresa, percebeu seu inesperado visitante ainda ofegante; convidou a entrar. Ajoelhado, Juca jurou sua paixão nunca antes declarada; ofereceu-lhe aliança de ouro. Informou-lhe sobre o par de cavalos, um selado para ela. Dali, seguiriam para a casa de fazenda, onde celebrariam o casamento na intimidade. Lauren nem parou para pensar, parecia aguardar aquele momento. Abraçou-o com afeto, trocou de roupa, fez uma pequena trouxa de pertences pessoais e partiu. Deixou um bilhete, informando sua ausência por uma semana e orientando os empregados sobre as tarefas a cumprir.

Naquela semana, as costumeiras paradas de Deco na encruzilhada e porteira de entrada da fazenda de Lauren passaram a ser mais curiosas e demoradas. Sem notar a cobiçada boneca de saia rodada com baldes na mão, imaginava-a contida no interior da casa, deprimida pela solidão, à espera de um amado companheiro.

Sábado de lua cheia, na pensão de Lorinha, sentou-se à costumeira mesa, tomou uma cachaça com gengibre e sentiu falta de seu primo. Fazia duas semanas que ele não aparecia na cidade. Antes de completar o segundo gole, eis que Juca sorridente, com ar de felicidade, chega, cumprimenta todos os presentes e senta-se ao lado de Deco apoiando carinhosamente a mão no seu ombro.

- Bem chegado, primo, estou caçando você pr’uma prosa. Precisando desabafar e saber de seu conselho.

Juca pediu uma cachaça na infusão de romã e relaxadamente cruzou as pernas. Dispôs-se a ouvi-lo, enquanto picava fumo para um cigarro de palha.

- Em minhas passagens pela cancela do Vale do Sino, não tenho visto Lauren. Pelas conversas que ela deixou escapar pode estar doente de tristeza, sentindo-se só e desamparada. Penso em visitá-la e, levando-lhe um ramalhete de flores, pedir sua mão em casamento. Ou então roubá-la à noite como fazem os ladrões de mulher. Que orientação você me dá?

- Primo, acho que você nem carece de fazer plano pra isso. Lauren já mora comigo na minha roça. Estamos marcando data para casar, sob as badaladas daquele sino que também levei para minha propriedade. Você será convidado!

- Tzs, tzs, tzs - Deco amarelou e pediu mais uma cachaça, dessa feita, pura.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 19/04/2019
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