Os coletes amarelos

Passa pelo meu atelier com certa regularidade de tempos para cá. Tem palestra agradável, de repertório amplo e eclético, construído em cima das próprias experiências, vividas nas muitas andanças de sua vida aventureira, também certamente dos estudos aleatórios tangidos por uma curiosidade que não tolera o sol se por sobre uma interrogação. Aliás, tem trazido a mim a cada visita uma questão que procuro esmiuçar, não raro recorrendo a velhos livros que, estes, os tenho por aqui às centenas em afável desordem.

É sempre um prazer recebê-lo, não somente pelo entretenimento da conversa banzeira de quem já correu na vida o que tinha que correr e agora tanto faz, mas também pelo que sua amizade representa para mim. Não importa se ainda pela manhã, faz questão de confessar o que o hálito etílico denuncia à primeira palavra de cumprimento, o que em nada altera o valor do momento.

Nossa amizade data de 1977, quando então com onze anos, eu era seu ajudante na fábrica de calçados. Ele, com dezessete anos, era o responsável pela “remessa”, nome usualmente empregado à produção diária. Nossa tarefa era orlar os cortes e enfaixetar os saltos de madeira. A fábrica a que me refiro tinha uma produção diária de quarenta e oito pares do chamado sapato colegial feminino, em verniz, de uso obrigatório na maioria das escolas do país. Eram seis remessas por semana porque naquele tempo se trabalhava também aos sábados. A cidade não havia ingressado ainda na onda do sintético e só trabalhava o couro. As fábricas tinham baixa produção, quase artesanal, mas regulares, quase sempre de um só modelo. Botinas de vaqueta ou de búfalo, com solado de pneu ou de sola, quase sempre blaqueados. Sapatos de antique, de bico largo e salto alto, manchados no escovão, muito na moda, pois combinavam divinamente com as coloridas calças boca de sino, também os chamados colegiais, pretos, sóbrios, masculinos ou femininos como era o caso da nossa produção. As formas tinham chapas de aço e os contrafortes eram geralmente montados por rapazolas que prendiam na boca punhados de tachinhas que iam retirando uma a uma.

Podia-se cronometrar cada etapa do trabalho, as condições do mesmo dificilmente se alteravam. Meu parceiro e eu terminaríamos nossa tarefa todos os dias às 17h. Terminaríamos se não parássemos às 16h para assistir, na TV preto e branco do bar do Orlando, à série Tarzan, interpretado por Ron Ely. Voltávamos ao trabalho uma hora depois, discutindo eufóricos o episódio do dia, éramos quase sempre surpreendidos pelo som metálico dos auto-falantes, tipo corneta, instalados na torre da antiga Matriz de São Sebastião, quando jogavam sobre os telhados do velho casario a melancólica ave-maria.

— Tudo o que tenho está nesta mochila. Ele me diz sem mágoa alguma.

— É claro que não! Eu o admoesto. Há coisas que você possui que não poderá levar numa mochila. Como as velhas amizades.

Parece refletir um pouco. Serve um café bem pequeno. Sorve de um só gole e lança a questão de hoje:

— E essa onda de protestos na França? Não acha que está faltando alguém como Daniel Cohn-Bendit para cristalizar as reivindicações?

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 23/04/2019
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