21:12

_ Que horas são?

_ 21:12.

_ Já vai dormir?

_ Sim.

_ Como pode estar com sono? Dormiu o dia inteiro.

_ Ultimamente essa é a única coisa que quero fazer.

_ Está cansado...

_ Não sei de que... mas...

_ Mas está...

_ Devo estar anêmico.

_ Vá ao médico.

_ Sim.

_ Sim. (procurando assunto). E o show?

_ Que é que tem?

_ Como foi?

_ Bom.

_ Mas...

_ Mas acabou.

_ Virão outros.

_ Sim... (sem certeza).

_ Está sentindo algo?

_ Não.

_ Como não?

_ A única coisa que tenho sentido é sono.

_ Me refiro a sentimentos.

_ Eu também.

_ Mas você sempre foi tão... sentimental.

_ Sim.

_ Enérgico, romântico...

_ Sim, sim...

_ Sinestésico.

_ O que?

_ Sinestesia. Quando sentimentos muito fortes se misturam.

_ Se misturaram de tal forma que se anulam.

_ Não diga isso.

_ Em algum momento, algo aqui dentro morreu.

_ O que seria esse algo?

_ Não sei. Acho que tudo.

_ Tudo?

_ Acho que sou um demônio.

_ Não diga isso! (pausa, sem reação). E agora? Que horas são?

_ 21:12.

_ Ainda? Ou essa conversa durou um dia inteiro?

_ Isso faz diferença?

_ Dizem que quando olhamos no relógio...

_ (para si, interrompendo) Lá vem...

_ (continuando) ... e vemos as horas e os minutos trocados, significa que estão pensando em nós.

_ Pra mim são as horas e é o nome de um disco. Apenas.

_ Mas é verdade!

_ Já ouvi dizer que significa maledicência.

_ Não, só se for 23:32.

_ E às 21:12 estão pensando o que? (descrente).

_ 21:12 significa que alguém quer o nosso bem. Quer ficar próximo.

_ Ah sim...

_ E você bem disse que todos os dias olha essas horas no relógio. Alguém quer ficar muito ao seu lado e te quer muito bem!

_ Ninguém quer ficar perto de mim. Nem me querem bem.

_ Por que?

_ Por que eu não quero que elas queiram.

_ Pare com isso. Pense que, todos os dias nesta mesma hora, e que agora neste exato momento, alguém pensa em você e te quer bem.

_ Deve ser minha mãe rezando pela salvação da minha alma.

_ Pode ser. E isso não é ótimo?

_ (suspira) Sim.

_ (olha com dúvida) Isso não é o suficiente?

_ Sim. Só não queria que fosse necessário.

_ Como assim?

_ Eu não quero que rezem por mim.

_ Por que?

_ Me deixa! Já falei de mais!

_ Me explica!

_ Estou com sono. Boa noite.

_ Não quer que se aproximem. Não quer conversar. Não quer dividir.

_ Não. Não quero!

_ Não quer nem que rezem por você!

_ Não!

_ Mas por que?

_ (súbito) Por que eu não mereço! (pausa). É isso.

_ Claro que você merece. Todos merecem.

_ Eu não.

_ Por que não?

_ Já disse. Sou um demônio.

_ E eu já disse para parar com isso. Você não é.

_ Sou.

_ Você não é mal.

_ Mas eu causo.

_ A quem?

_ A todos.

_ Até pra você?

_ Principalmente a mim mesmo.

_ Não. Você não causa.

_ Causo. (começa a se alterar) E quer saber por quê?

_ (com medo) ?

_ Por que as pessoas merecem.

_ Até você?

_ Principalmente eu mesmo.

_ E por que você pensa isso?

_ Por que as pessoas são más. Traem. Dizem ser quem não são. São hipócritas. Mesquinhas. Narcisistas. Manipulam, pisam, para se sentirem com um mínimo de poder e achar algum sentido em suas vidas inúteis. As pessoas mentem! Mentem por capricho, vaidade, orgulho. E mesmo que essa mentira te abra ferimentos no corpo, na mente e na alma, se é que isso existe, elas nunca, NUNCA acham que estão mentindo! Sabe por que? Por que vivem numa realidade paralela, alheia a vida real, onde tudo é justificável e o mundo gira em torno de si mesmas! É por isso que odeio as pessoas! É por isso que eu me odeio! Me odeio por não conseguir perdoar ninguém. Me odeio por odiar e por me odiar! Me odeio por ser refém de mim mesmo, trancado no passado, revivendo memórias e sentimentos num inferno particular todos os dias! Me odeio por viver com essas pessoas e ter me tornado tão podre quanto elas! (respira ofegante).

_ (longa pausa)Você é a pessoa mais rancorosa que já vi na vida.

_ Sou.

_ (respira) Você tem que parar de achar pseudônimos para tentar explicar o que é. Você não é um inquisidor, ou um morcego, muito menos um demônio. Você é... você. Apenas isso.

_ (olha para a janela fixamente por alguns instantes com os olhos arregalados, e suspira) Que horas são?

_ 21:12.

_ (pausa, ainda ofegante) Então eu não sou um demônio.

_ Não.

_ Nem um inquisidor, nem um morcego...

_ Nada.

_ Não. Não sou um demônio.

_ Não. Você não é.

_ Sou algo muito pior. (se vira, fecha os olhos e dorme).

Luan Tófano
Enviado por Luan Tófano em 20/05/2019
Reeditado em 21/05/2019
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