Quebra-cabeças

O menino atento olha embasbacado as peças se encaixarem, aos poucos formam figuras e imagens, para seus olhos infantis, é pura magia. Ele passivamente vê mãos ágeis e carinhosas trabalharem entremeadas com palavras gentis e incentivadoras, é a primeira vez que ele percebe o quebra-cabeças e este momento será eternamente marcante. Absolutamente inesquecível.

Com o tempo, o menino passou a manipular as peças e tentar encaixá-las, mesmo com sua sensibilidade primitiva e pouco campo de visão, o quadro evoluía e lentamente as peças agrupavam-se. Não era mais magia, começava a inspiração e a recompensa pelo esforço.

Mais tarde, as peças maiores começaram a rarear, o menino, já não mais um neófito no jogo, começava a perceber nuances e detalhes que facilitavam o encaixe, surgiam o “feeeling”, o discernimento, a noção de que nem sempre o óbvio é inquestionável e a decepção, tanto a de não achar uma peça certa, quanto a de que a peça aparentemente perfeita simplesmente não se harmoniza e o côncavo nem sempre se encontra no convexo.

Pessoas passaram por ele, algumas só fitaram o quebra-cabeças e passaram direto, outras colocaram uma ou mais peças e partiram em silêncio, mas o que mais doeu foi ver algumas desfazerem a parte que construíram antes de sair. Misteriosas, as que imperceptivelmente contribuíram em algum encaixe sem deixar rastros ou marcas, como uma brisa que anuncia algo e desaparece mesclada ao sabor do vento.

Os anos passaram, muitas luas e muitas marés, mas a percepção infantil da magnitude do jogo prevalece, sempre surgem novos cenários e algumas peças aparentemente fixas se descolam e exigem um retorno, num ciclo sem fim.

Agora o menino já é um homem, joga o tempo todo, até de olhos fechados, brinca com as peças e as move ao seu bel prazer, não tem mais a ilusão de moldá-las ou forçar encaixes. Por mais que manipule o tabuleiro, inverta-o ou tente customizá-lo vê sempre uma brecha, um hiato e sente uma angústia no peito, pois tem a absoluta e total certeza que a peça que falta é você, não alguém parecido, não alguém similar, apenas e tão somente você e que sem a sua presença, tudo em sua vida será sempre incompleto, exatamente como o quebra-cabeças que nunca fecha e jamais permite a sensação de completude, como um rio que perde sua essência em afluentes antes de desaguar no mar, apenas tentando abrir novos caminhos para lhe encontrar, mapeando uma área maior para lhe buscar.

Sem você não há harmonia e a palavra perfeição perde o sentido, sem você, nada vale ou merece ser vivido.

Ello
Enviado por Ello em 02/06/2019
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