Acredito!

Aquele cara passou pelo inferno. Já vi muito sofrimento de passagem por aí, mas nunca havia presenciado como o daquele cara, nunca! Pelo amor de Deus! Tive vontade de dar um fim na dor dele, ele quase me implorou por isso, mas, como ambos somos profissionais do Direito, tínhamos a plena consciência de ser um crime. Admirei sua lucidez mesmo na desgraça. Teve uma hora que me pediu maconha, rivotril, cocaína, cerveja... Foi a hora que chorei. Ele nunca havia usado essas coisas. Disse que queria experimentar, mas eu sei que o que mais queria mesmo era tirar aquela maldita dor, era sair dali de qualquer jeito. Chorei veladamente para não demonstrar mais sofrimento.

Passou por três cânceres. Esse, certamente, seria o último, apesar de sua crença em Deus, mas a medicina diz que em casos assim realmente é aguardar a morte.

Pelo que foi me dizendo, seu corpo estava mais remendado que as vestimentas daquelas criancinhas mais miseráveis do sertão nordestino. Passou por cinco cirurgias, seu intestino se reduziu a carne moída de tanto que viraram, desviraram, emendaram e desemedaram. Arrancaram muitos pedaços dele! Relatou sobre o frio, a febre, os tremores, dores inimagináveis, entubamentos, disritmia, a solidão das madrugadas nos hospitais, os gemidos e arrastar de rodas, as vassouras, enfermeiras gostosas. Disse que em determinado momento seu coração batia mais acelerado do que a bateria do Sepultura. Naquela hora achou de verdade que iria morrer ali. Chorou muito quando falou dessas angústias. As veias de sua fronte magra saltavam e sua boca murcha lamuriava algo que nenhum homem saudável compreenderia. O porquê daquilo tudo?, perguntava olhando para o teto. Ninguém sabia, assim como ninguém sabe de nada nesta vida! As pessoas se atacam, se matam, mordem-se, invejam-se, esquartejam-se, mas ninguém pára para pensar que tudo isso é tão efêmero e passageiro que o amar uns aos outros seria a solução para esses malditos conflitos humanos, conflitos mundanos, a maledicência, a covardia, os rancores, as amarguras, tudo isso vira pó quando você vê um amigo seu naquela situação!

Ele se contorcia e mexia o tempo todo coçando a barriga, mastigando a boca e olhando para o nada. A dor latente o cegara de tudo o que era até então positivo. Apenas seu amor pelo rock, o que nos uniu, ainda prevalecia. Falava das bandas, das letras, das músicas, dos projetos que tinha para si mesmo nesse sentido. Ali pude perceber a essência do rock n roll, muito mais do que um gênero musical, uma ideologia, uma forma de se viver e enxergar esse mundo doente, uma maneira de buscar a paz.

A TV Globo ligada na sua frente. Perguntei se estava assistindo e ele disse que não. Disse que a deixava ligada apenas para aplacar o silêncio. Olhava para o nada e dizia que em sua mente tocava AC/DC e Metálica, mas seu corpo estava morrendo. É o pior, me disse, “esta cabeça boa e este corpo apodrecendo!”

Falamos de negócios, a vida lá fora, os processos, nossa banda, nossas bebedeiras, brincadeiras, muitas risadas... Poxa, o cara tem quarenta e cinco anos de idade!

O que mais o remoía naquele momento, além da dor e da devastação em seu corpo, foi não ter feito muitas coisas simples que sempre teve vontade, como, por exemplo, fechar o escritório às três da tarde de uma terça feira qualquer, fumar um baseado e ir tomar cerveja com os amigos na praia, ouvindo clássicos do rock...

É foda isso! Muito foda!

Um grande amigo! Um grande homem! Uma das pessoas mais inteligentes que pude e posso ainda conviver! Vibro por sua melhora, mesmo sabendo dos diagnósticos! Mesmo assim, fodam-se os diagnósticos! À merda os diagnósticos! Tudo pode acontecer nesta vida! O cara pode simplesmente melhorar com a força de sua mente e sair disso, voltar à vida! É um merecedor! Seria a glória para nós! O abracei desta última vez e procurei lhe transmitir todas as minhas mais sinceras e profundas energias (que são muitas!), e acredito nisso!

Acredito!

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 19/06/2019
Reeditado em 19/06/2019
Código do texto: T6676595
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