Ainda é manhã

Crianças corriam aos berros com a vivacidade escancarada, longe da calma que eu procurava encontrar no parque, a tímida vivacidade de um silêncio aconchegante do som das árvores, dos galhos carregados de folhas fora da estação.

Era outono, mas tudo estava tão verde que me vi feliz por este traço singelo justamente no dia que decidi sair de casa. Ahh... há tanto tempo que não saía de casa que quase não me lembrei se meu portão abria para dentro ou para fora.

Neste dia pela manhã, despertou como um sonho distante a imagem do parque em frente à minha rua nos tempos primeiros em que me mudei para cá e Jordano acabara de nascer. Tudo possuía uma tranquilidade diferente daquela que via então. Gosto de falar com poesia que a margem da lagoa lambia o gramado rasteiro, ali onde os pequenos e rechonchudos pezinhos se molhavam ao lado dos adultos que pescavam e tocavam viola. Dali dava pra ver a sombra de Horácio se levantar detrás da cortina do nosso quarto no andar de cima aos domingos, dia em que sempre acordava mais tarde que nós e vinha aproveitar o dia bem mais tarde, no fim da brincadeira, quando tínhamos de retomar o ânimo ao ver surgir pelo portão aquele bigodudo sorridente trazendo quitutes e as vezes a bicicleta que fazia as crianças disputarem cada uma pela sua vez de andar.

Nestes dias eu me sentava junto a este homem como se logo viesse outro domingo de novo e nossas vidas fossem esse eterno andar de bermudas e sandálias nos pés.

Poucas vezes tenho reparado em como o tempo passou. Poucas vezes tenho conversado com o espelho e minha sombra na parede no corredor de casa. Poucas vezes tenho olhado pela janela para ver a movimentação pelo parque que tanto cresceu e só então podia notar. As raras ocasiões em que me lembro de reparar ali pra dentro foi quando dirigindo, um olhar me escapava pela lateral do carro e dava de encontro com um resquício de passado. Nunca olhei para a realidade tal qual ela estava, mas sempre via como que em uma fotografia a imagem de conhecidos, o som de uma antiga canção... os traços que o tempo não leva de nós.

Neste dia em questão, quando me sentava envolvida num tricô que tomou a forma de meu corpo e idade, a realidade me deu uma palmada ardida. Me via como a única que continuava a mesma, ainda que minha imagem houvesse mudado drasticamente.

Custava um pouco me acostumar, mas a naturalidade aumentava com o novo mundo que passava a conhecer. A forma como os jovens tomaram conta do espaço familiar que agora era preenchido por adolescentes que mergulhavam e namorados que se beijavam em meio a crianças desesperadas e pais que se deliciavam em piqueniques e trailers de todo tipo de comida que havia ali tão ao lado de casa e eu nunca percebi.

De certa forma, a coragem de por meus pés na rua trouxe recompensas e um grande puxão de orelhas. "Veja Dolores, o que tua covardia a fez perder por tanto tempo". Tanto tempo... Oh tanto tempo, pra que contar? Não, não merecia pena tão cruel como a contagem de quanto tempo estive ilhada.

Havia mais o que fazer. Havia gaivotas. Cheiro de comida pronta. Voz de gritaria infantil. Ar de estação que se mistura, frio e calor. Eu oscilava num tirar e colocar a blusa tedioso, quando deixei de prestar atenção no que fazia ao surgir detrás dos bambus um grupo de cinco jovens e em especial, um rapaz entre eles que parecia com Jordano.

Fiquei vendo, certamente com alegria no semblante, a felicidade espalhafatosa com que jogava pedrinhas na água. Imaturo, despreocupado. Fazia piadas que não ouvia direito mas que faziam os meninos e meninas gargalharem. Não sei quanto durou minha vigia, mas tinha os olhos atentos, sedentos por descobrir o seu dorso quando ele tirou a camisa, curiosa que estava por saber se aquele corpo me transportaria ao passado, a imagem de Jordano ao crescer, tornando-se homem.

Ah! Me lembro da sua primeira namorada! Devia ter a mesma idade do moço, mas seu jeito nada tinha a ver. Jordano jamais falaria tão alto ou tiraria a camisa em público. Mas eu o vi crescer, por isso sabia como ninguém como ambos se assemelhavam. Vi seu corpo se transformar como só as mães reconhecem nos filhos. Vi seus medos surgirem e desaparecem. Vi sua juventude passar depressa, seu casamento e o dia em que saiu de casa.

Estava entusiasmada em reparar nos olhos pretos do menino, duas jabuticabas lustradas. Impressionante como eram parecidos! Tive vontade de ouvir a voz mais de perto, então me levantei sem pensar e me acerquei do grupo.

- Por favor, pode me informar se já são 16h?

O jovem, estranhando minha pergunta e ao mesmo tempo tomado pelo susto me olhou com a breve profundidade de que eu precisava e me deu o divino presente da sua voz.

-Senhora, ainda é manhã.

-Oh, que vergonha! Me desculpe, não queria incomoda-lo! É que as 16h Jordano irá chegar... Oh não... às 16h Jordano iria chegar e eu teria de espera-lo com o café que gostávamos de tomar pela tarde...

O moço silenciou, com uma expressão perdida de quem não sabe o que dizer, mas como não quis que ele se desse ao trabalho de pensar, me antecipei.

- Obrigada, rapaz. Você tem uma belíssima voz.

Segui andando, ao que ele agradeceu abrindo o primeiro sorriso enquanto os demais riam, zombando-o.

Meus olhos marejaram, não num choro mas numa gratidão porque ambos se pareciam e aquilo era demais para um dia só. Uma surpresa, um frenesi.

Jordano estava ali. E inevitavelmente o presente não me atraia senão pelo seu poder, nostálgico e esmagador de me servir apenas como un retrato preso na parede me levando para lugares e coisas que eu já vivi.

Beatriz Beraldo
Enviado por Beatriz Beraldo em 20/06/2019
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