Um livro não terminado II

APRESENTAÇÃO

O engraçado é que eu nunca descansei muito. Passei quatro meses fazendo o trabalho de uma funcionária do meu chefe, que se achava a dona da empresa e jogando ordens aos quatro cantos, respingando na maioria das vezes em mim, enquanto ela fingia que era obrigação minha e eu fingia que acreditava nela porque não sou a pessoa que consegue dizer não sem achar que estou magoando profundamente alguém. Por isso mesmo eu sigo me magoando profundamente e ninguém parece notar ou dar tanta importância afinal. As coisas acalmaram de forma significativa, mas volta e meia me pego sentindo a inutilidade que as horas vagas descarregam sobre meu psicológico. Ano passado, por exemplo, (o que daqui a pouco se torna, “há dois anos”), tive uma quase chance de dormir até mais tarde e relaxar os músculos tensos, os ossos doloridos e a minha cabeça, que parece uma batedeira de pensamentos. Mas, meu cérebro adora um sadomasoquismo de leve (ou nem tão leve), se torturar é com ele mesmo! E seguimos, eu, ele e meu corpo, nessa orgia sincronizada de quem (se) fode mais. Levantava as nove e ficava andando pela casa sentindo ódio de quem eu era naquele momento e de quem eu imaginava que nunca fosse conseguir ser. Voltando a um pouco depois da demissão dessa funcionária, hoje eu sou quase isso que achei que não seria possível, foi um cala a boca pra pessoa que sentia todo o peso da insegurança nos ombros, mas mesmo assim não desistiu de lutar por nada disso, e cá estamos nós. Mesmo com tudo isso, eu ainda sinto que coisas boas estão vindo, nem queria dizer que isso poderia ser influência do que restou dessa antiga pessoa, dos ossos doloridos, coluna, joelho, martelada de pensamentos, cérebro incansável, mente estranha... Era só eu, ali uns dois anos mais velha, uns setecentos e trinta dias um pouco mais gastos e com uma bunda menos bonita e com a capacidade de não se importar (pelo menos com isso) como antes, e talvez por isso mesmo, não tenha a bunda tão bonita quanto dois anos atrás. Deixa pra lá...

Esse é o início de um livro que decidi começar a escrever hoje, ignorando todos os outros textos prontos, e todo o material que eu pensei que gostaria de mostrar antes de escancarar assim quem eu sou que a propósito, muito prazer, me chamo Karolina e vou te acompanhar no decorrer dessas... Dessas muitas páginas, não estipulando

números, mas vou falando sobre todo o aglomerado de efeitos e causas que me impactaram e continuam encontrando novos jeitos de continuarem fazendo isso. A gente vai se entendendo, é o que eu espero.

As pessoas são o que são, e quase sempre conseguem ser com muita intensidade, mesmo assim não sabem ser e por isso perdem tempo demais tentando explicar aos outros. E ai, no meio dessa minha briga interna, eu cansei. Cansei de correr contra a maratona gigante de pessoas pesadas no meio das ruas esburacadas. Eu cansei das músicas rápidas e das bebidas alcoólicas com gosto de Dipirona. Cansei das moças com seus Jeans Destroyed e os caras com um copo na mão

e camisas com um cavalo bordado, ou qualquer outra coisa maior que o cérebro deles. Cansei da tossezinha no fim de cada frase com tom de polimento para disfarçar o quão “nem ai” as pessoas estão umas para as outras e das outras para mim. Cansei de não poder colocar os cotovelos em cima da mesa durante as reuniões de trabalho, ou de ter que assinar projetos que não são a minha cara porque preciso vender minhas idéias

para pagar o aluguel no fim do mês. Eu cansei de diminuir meu tom, meu jeito, meu olhar, os movimentos da minha boca e do meu corpo, até ficar bem lento de um modo que não pareça ameaçar a insegurança embrulhada na marra e afronte de gente que acha que pode mais que qualquer um, porque tem um diploma, ou uma família rica ou um diploma (talvez até mais) e uma família rica simultaneamente.

Eu cansei de ser uma dessas pessoas inseguras que pensam que precisam provar alguma coisa para outras pessoas inseguras, de que eu posso até ser insegura, mas uma insegura diferenciada e que só por isso mereço o desconto no preço que se paga por não ter mais idade para chorar no meio da rua, do banco, do shopping como se tivesse acabado de quebrar o pé. Eu nunca quebrei o pé, mas já torci e doeu de um

modo que eu não tentaria descrever agora, cansei disso também.

Ana Karolina
Enviado por Ana Karolina em 21/06/2019
Reeditado em 21/06/2019
Código do texto: T6678319
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