Eu precisava falar sobre isso

Talvez seja um monte de coisa que vocês não precisam saber. Mas talvez seja uma espécie de desabafo.

Eu prefiro descrever como uma espécie de coragem.

Pra quem não sabe, sou um dos advogados de uma grande empresa de consórcio. Atuo na parte imobiliária, ainda colhendo frutos dos anos de cartório - em especial o Registro de Imóveis de Santa Isabel. Isso sem contar que, em paralelo, mantenho meu próprio escritório ao lado da minha namorada e de um dos meus melhores amigos. Ali, também prefiro me dedicar ao ramo imobiliario, também levando familia e sucessões na carteira. Me familiarizo, me sinto bem e gosto muito do que faço.

É, em tese, a receita perfeita pra dar certo. Eu faço o que gosto, numa empresa que eu gosto e com pessoas que eu amo.

E deu. Está dando. Vai dar.

Mas aí eu saio do trabalho e me pego num transporte público lotado e sucateado, rodeado por um monte de gente que com certeza é tão guerreira quanto eu. Aqui ao meu lado são pais, mães, maridos, esposas e filhos correndo atrás do que quer que seja: um alimento, um diploma, um carro novo, um apartamento... cada pessoa tem seu próprio universo e se tem algo que eu aprendi melhor que regularizar imóveis, é nunca desdenhar do sonho e muito menos da batalha de ninguém.

No mesmo vagão, me apresso em por os fones de ouvido, porque pra mim as estações parecem passar mais rápido. As músicas vão tocando e conforme as notas vão se fazendo, eu vou viajando e pensando num monte de coisas que vocês não precisam saber, enquanto a gravata, já meio desalinhada, me sufoca, o paletó me cozinha e o sapato destrói aquilo que sobrou dos meus pés.

Mas pra quem também não sabe, eu toco bateria e queria mesmo era ter uma banda de rock. Serio, queria viver disso. Tomar que algum dia ainda haja tempo.

Aí me pego lembrando do árduo caminho que foi chegar até aqui. Passar aos trancos e barrancos na escola e especialmente no terceiro ano do ensino médio (um agradecimento especial ao professor Marcos Ferraz que arredondou minha nota de química pra que eu não reprovasse e ao Valmir que sempre pegava leve quando o calo apertava), até concluir a faculdade, acordando cedo e dormindo tarde. E quase no fim, o peso de prestar o exame da OAB - um cansaço psicológico mais pesado que o físico. Afinal, o que seria eu, um “mero bacharel”? - perguntariam, com certeza e com aquele ar de deboche respeitoso.

Nesse meio tempo, fui mandado embora dos meus empregos duas vezes. Encontrei forças nos meus pais, namorada e amigos pra seguir em frente.

Eu sou a personificação do ditado “há males que vem para o bem”.

E então, “mais que a obrigação” - podem dizer.

E eu rebato, com veemencia: jamais!

Que mania estranha de romantizar sofrimento! É lindo dar a voltar por cima e renascer das cinzas é uma das melhores sensações que um ser humano pode experimentar.

Mas, beira o absurdo dizer que é obrigação.

Explico: eu não tenho obrigação de - com o perdão da palavra - absolutamente porra nenhuma, senão de respeitar os outros. O resto eu faço porque gosto, convém e faz bem.

Sejamos sinceros:

Que tipo de vida maravilhosa começa em cabelos falhados, dificuldades cognitivas e cocô nas calças, passa por acordar as 4h da manhã, almoçar um self service mais ou menos as 13h e pegar um trem lotado as 18h, pra, no final das contas acabar em cabelos brancos, dificuldades cognitivas e cocô nas calças?

(Isso sem mencionar as idas ao banco na hora do almoço, pra acabar com a conversa)

Preciso que alguém me lembre onde eu aproveitei e curti, pelo menos, minha aposentadoria - isto é, SE eu me aposentar, né?

Obrigado aos envolvidos.

Por falar em lembrar, não gosto nem de pensar no tempo que eu perdi na escola tendo um monte de aula que me foi inútil. Matematica, quimica, fisica, geometria... isso sem falar em português e suas derivações que ninguém sabe pra que serve, predicado, sujeito, orações assindeticas e um monte de coisa que nem o nome lembro mais, de tão útil que me foi. Uma infinidade de matérias inúteis que me fizeram apenas quase reprovar na escola todos os anos e tomar varias e varias broncas dos meus pais.

“Você não quer saber de estudar” - diziam

E não queria, mesmo. Só coisa chata, credo.

“Acha que vai ser o que se continuar assim?” - perguntavam

Bom, o que eu seria, eu ainda não sabia direito, mas eu tinha certeza sobre quem eu seria.

E vou além: ‘quem’ está além do ‘que’.

“Você leva tudo na brincadeira” - falavam

E levo. Levo mesmo. Levo porque é leve. Se eu, no fim das contas, não enxergasse tudo como uma brincadeira, com certeza já teria largado mão.

No mais, quem defende aquele tipo de sistema educacional parou no tempo ou é ignorante, mesmo. Com um sistema educacional falido, a molecada fica cada mais desinteressada nos estudos e consequentemente emburrece à medida que compõe o “nem, nem”: nem estuda, nem trabalha.

Não estuda porque é um saco e não trabalha porque não tem. E o que tem, muitas vezes pode facilmente ser confundido com exploração, vide “menores aprendiz”, “estagiários” e demais manobras trabalhistas pra explorar mão de obra barata sem ter que pagar o devido por aquilo. Já vi esse filme antes.

Me desculpem os educadores - que são nossa preciosidade mais desvalorizada - e me corrijam se eu estiver errado, mas hoje a molecada precisa de outro tipo de incentivo. Aprender, por exemplo, a diferença entre financiamento e consórcio, escriturar e regularizar a própria casa, uma base de direito e principalmente economia (na prática, cacete) faria muito mais efeito que essa grade retrógrada e desinteressante de misturar número com letra e fazer conta, interpretar a letra de “Cálice” ou ler Dom Casmurro (que é um saco, diga-se de passagem) por obrigação.

Eu falo por mim, que sempre ia razoavelmente bem naquilo que me interessava, mas sempre me dava mal naquilo que não gostava. Talvez fosse um sinal que eu nunca fosse usar. E de fato, eu estava certo.

É como um livro: nem lembro qual o último que li na vida.

Entendo a importância, mas prefiro focar em escrever o meu próprio. E eu espero que vocês comprem.

Em tempo, ninguém é mais culto porque lê. É só mais uma atividade produtiva. Como tocar guitarra, por exemplo.

Afinal, alguma coisa eu preciso deixar pra eternidade. Que seja então um poema e meia duzia de crônicas, daquelas pra viver e sentir junto o relato.

(...)

Mesma coisa que entrar na faculdade: infelizmente nem todo mundo pode pagar uma faculdade. E o que eles fazem? Dificultam o acesso às universidades públicas, onde parte dos alunos são filhos de gente com grana pra bancar cursinho e demais tipos de preparação. Esses também não tem culpa - pelo contrário, também tem seus méritos. Ninguém tem culpa de nascer rico ou nascer pobre. Entretanto, a divergência entre as oportunidades dessas pessoas é culpa nossa. Toda nossa.

Principalmente daquele sem noção do que é a definição de “consciência de classe”.

Se eu começo a pensar demais, não consigo mais parar e fico revoltado. Porém, volto pra realidade com a mesma rapidez com a qual me distancio. E é assim desde sempre, acredito que sempre será.

E então me atento novamente às minhas roupas e me lembro de outra coisa que me incomoda profundamente: o “uniforme” da firma.

Desculpem-me aqueles que gostam, mas eu quero fazer audiência de camisa xadrez e tênis. Não por ser informal e muito menos por desrespeito às partes e colegas de profissão. Mas sim por ser indiferente: eu estou ali pra trabalhar, pra defender os interesses daqueles que confiaram em mim e no meu trabalho. Já vi situações onde um colega, sem gravata, precisou emprestar de outro advogado, caso contrário a audiência não ocorreria. Como se fizesse diferença, mesmo.

Mas, temos que seguir a legislação. Embora o “temos” seja bastante relativo.

Entretanto, precisamos nos lembrar que as leis são criadas, revisadas e aprovadas por quem não anda de transporte público e nem precisa bater ponto. Se fossem, garanto que seria mais eficiente.

Votamos, elegemos - e pior ainda, em alguns casos - defendemos um monte de gente incompetente que muitas vezes faz nem ideia da responsabilidade que carrega consigo. Talvez faça, mas por picaretagem, prefere ignorar.

Eu tenho coisa muito mais importante pra defender do que um terno na estica, uma gravata alinhada e um sapato brilhante.

Eu tenho coisa muito mais importante pra defender do que um decreto imperial que supostamente me dá a condição de doutor.

Aliás, até onde eu sei - e me corrijam se eu estiver errado, por favor. Não sou e nem quero ser o dono da certeza - doutor é titulo acadêmico e não pronome de tratamento.

Mas eu, sozinho, posso fazer o que, se mesmo meu órgão de classe, não luta comigo? E sinceramente, não precisaria nem lutar por mim. Comigo já seria importante.

Mas eu, sozinho, posso fazer o que, se alguns dos meus próprios colegas de profissão nos desvalorizam de diversas formas?

Eu tenho outras prioridades e jamais vou me deixar levar por esse delírio coletivo. Eu já disse: eu quero uma rua com o meu nome.

Sucesso é uma coisa bastante ampla, embora geralmente as pessoas associem a algo bastante singular. Eu só quero fazer meu trabalho e ser devidamente reconhecido por ele. Nem mais, nem menos.

Logo que comecei na nova empresa, algumas pessoas vieram me parabenizar. Disseram estar felizes por mim, pela oportunidade. Que é ótima, mesmo.

Perguntaram da sede, se eu tenho uma sala só pra mim (e não, não tenho, mas quem sabe um dia?), da minha mesa, dos meus superiores, dos meus benefícios (vt, vr, plano de saude, etc.) e até do meu salário e bonificações. Respondi a todos com a devida atenção e cordialidade. Mas confesso que fiquei um pouco chateado por ninguém ter me perguntado se eu estava feliz.

E é isso que me chateia. Minha conta bancária ou meu sucesso profissional (sejá la o que isso queira dizer) ser motivo de mais curiosidade do que meus textos, que posto aqui no recanto ou do que eu tenho pra dizer numa mesa de bar num sabado a tarde.

É sobre isso que eu precisava falar.

Já respondo a retórica: estou muito feliz. Colho os frutos de um trabalho bem feito, mas com muitos ralados no joelho. Tenho algumas oportunidades que tenho consciencia que nem todos podem ter - queria que assim fosse.

Eu vejo minha vida da mesma forma como eu aprendi a andar de bicicleta.

Eu andei com rodinhas até uma parte.

As tirei e, então, caí muito. Pedalei por alguns metros meio sem equilíbrio e caía de novo. Sempre com alguém pra me ajudar a levantar.

E então, por mais alguns metros até cair, cair e cair de novo.

Até que finalmente aprendi. Pra nunca mais esquecer, mas com a chance de melhorar.

Pelo contrário, espero melhorar todos os dias como pessoa para, consequentemente, melhorar como advogado. Até porque moedas, bens e honrarias a gente deixa pra tras. Todo mundo pode ter o carro do ano, viajar em todas as ferias e cumprir aquilo que, de fato, se espera.

A que preço? Não sei e sinceramente, não me preocupo em saber agora.

Finalmente sinto que sei com que cabo toco a minha vida. E espero manter-me assim.

No final das contas, tudo acaba partindo de um ponto. Mesmo que as vezes esse ‘ponto’ seja de ‘ponto final’.

No final das contas, deixar um nome, saudades e um legado que realmente importa é que é difícil.

Espero, um dia, se Deus quiser, chegar lá.

Thiago Claudiano

Advogado

OAB/SP 415.822