Sobre uma Porção de Felicidade.

Nossa infância, a minha e de meus dois irmãos, se deu nos anos 80, entre os governos Geisel, Figueiredo e Sarney. Naquele tempo, assim como até hoje, meus pais nunca tiveram muito dinheiro para esbanjar, como meu pai gostava de dizer, mas tínhamos casa, carro, comida e a tecnologia da época. Lembro-me quando o primeiro videocassete chegou em casa. Segunda mão. Eu quase pirei de felicidade. Foi uma das tardes mais líricas daquele tempo, uma tarde azul. Podia agora alugar filmes na locadora do Alvinho e passar bons períodos assistindo meus filmes escolhidos. Meu pai sempre assistia comigo até o final. Gostava dos filmes que eu escolhia: Desejo de Matar, com Charles Bronson, Caçada Implacável, com Clint Eastwood, todos os do Arnold Schwarzenegger, Stallone, Chuck Norris e outras centenas de filmes de ação e aventura. Assisti a todos os filmes possíveis da época. Meu pai também assinava o jornal A Folha, onde havia uma sessão onde constava o cronograma dos filmes da semana na televisão e um breve resumo. Lia todos e ia selecionando. Um tempo mágico! Esperar o horário do filme escolhido ou pedir um dinheiro ao pai para locar um na locadora.

Para economizar e dar diversão à família, nos finais de semana meu pai, que havia construído sozinho uma canoa de madeira, atracava-a ao Fiat 147 vermelho e nos levava às corredeiras próximas, que eram três, e a cada semana íamos revezando de corredeira em corredeira. Eu tinha a minha preferida, meu irmão a sua e minha irmã, como era bem novinha, nem opinava. Meu irmão gostava da mais selvagem, menos inexplorada, e eu, mais novo que ele quatro anos, não curtia de jeito nenhum porque já havia visto vários animais e insetos perigosos. Numa tarde, enquanto nadava só com a cabeça de fora da água, sentindo a corredeira arrastar levemente meu corpo, vi descendo boiando para o meu rumo uma cobra nadadeira, negra. Até então eu era negligente para aprender a nadar, meu pai dizia: deixa o corpo contra a correnteza e vai batendo braços e pernas intercaladamente. Mas foi quando vi aquela cobra vindo em minha direção que aprendi de vez a nadar, e rápido. Praticamente quebrei algum recorde olímpico de criança da minha idade na época, caso isso existisse. Minha mãe, quando me viu nadando daquele jeito, sorriu de alegria gritando para meu pai: “olha lá! Olha lá, o Antônio aprendeu a nadar!”, e ambos riram às gargalhadas sem saber que na verdade eu estava fugindo de uma cobra que me perseguia na água. Só quando saí e minha mãe constatou a palidez de meu rosto, além da tremedeira, é que viu que aquela não foi uma nadada espontânea.

Minha mãe fazia pizza, quibe frito e suco de limão china para levarmos como lanche. Naquele tempo não era muito comum as coisas industrializadas, salgadinhos, elma chips, bolachas, não, essas porcariadas raramente entravam em nossa casa. Quando partíamos para essas corredeiras, na verdade, além de nadar, a gente caçava frutas silvestres. Era um período antes de os usineiros destruírem tudo. Hoje por aqui nem corredeiras existem mais. A cana e a gana humana secaram tudo! Cortaram todas as árvores de goiaba, cajamanga, joão-bolão, seriguela, pitanga, jambo, tamarindo, conde e outras dezenas. Tivemos uma infância boa. Nossos pais não brigavam, não discutiam, só se amavam e viviam para o trabalho e a família. Lágrimas nos olhos ao escrever isso... Fomos criados num ambiente fraterno de amor e carinho. Só apanhávamos mesmo quando a arte era grande! Eu mesmo apanhei umas três ou quatro vezes, somente, pelo que me recordo. A maioria delas pelas disputas que eu e minha irmã tínhamos pelos canais do único televisor da família. Na época televisão era muita cara. Meu irmão apanhou mais. Gostava de uma arte, subir em muro, matar passarinho com estilingue e espingarda de chumbinho, jogar goiaba e manga podre nos ônibus que passavam (esta talvez sua maior travessura). Já minha irmã, pelo que me recordo, nunca apanhou e nem deu motivos para isso. Era quieta até demais.

Toda vez que esses fatos voltam à minha mente, meus olhos brilham de saudade. Éramos felizes... Muito felizes...

Mas, como acontece com a maioria das pessoas, os problemas começaram a surgir na segunda metade da adolescência, com o fervilhar dos hormônios, mas esta é uma outra história.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 01/07/2019
Reeditado em 01/07/2019
Código do texto: T6685725
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