Eu o vi

Um dia eu o vi.

Eram três da tarde. O sol quente...acho que no auge como aquele outro sol de meio-dia.

Eu estava na frente da minha loja, no meio fio na sombra da calçada lendo um livro. Eu achava que a leitura estava me modificando pois tratava da história de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia..aquele assaltante de bancos de Brasília. É eu sei..antigão! Mas é História.

Coitada, mal sabia que nossa estrutura humana na sua maioria só é modificada no sofrimento.

Lá vinha ele puxando algo para o centro da praça, abaixo do sol só ele e a caixa de som externa que era quase da mesma altura dele, montou e testou o microfone.

A roupa, cinza. Um terno que cabia dois dele. E muita. Mas muita gratidão.

Ali o rapaz pregava com tanta fé aos transeuntes (pelo menos eu achei que era fé) que eu parei de ler. Olhei e pensei. "É um louco".

Eu INDEPENDENTEMENTE DE RELIGIÃO, não havia experimentado a gratidão.

Ele, estava tentando, com esforço e por meio da gratidão, mesmo sem saber, convencer a todos de que suas vidas podiam ser transformadas pela mão do pai, convecê-las de que Deus ia fazer na vida delas o que fez na dele. Por gratidão a Ele.

Mas eu ainda não sabia disso. Fechei o livro e dei as costas.

Tudo na vida é via de mão dupla. Quem é generoso sabe o o valor que se tem a gratidão. O sorriso, a positividade.

Sem falar que multiplica, cresce.

2018. Presídio feminino.

A fila parecia um caminho de formigas. Certinha. Ninguém furava a fila. Inimaginável né. Pois é. Lá certas organizações funcionam muito bem, tal método podia-se transportar pra cá...

Bom... Eu estava atordoada com pensamentos..as meninas todas de camisas brancas me remetiam a cor da perfeição, e via que as meninas e mulheres e crianças estavam na verdade em um mundo dentro de outro mundo...mas nada perfeito...puro inferno na Terra, quando...do nada me tocaram no ombro. Eu olhei com um olhar duro, seco e profundo, dentro do olho mesmo.

A detenta, apenas perguntou se eu podia lhe comprar um copo de café, não pagar, ela tinha dinheiro, mas não tinha o direito de entrar na fila.

Um copo de café, eu que tomo café deseperadamente sei o que é tomar um café e não fazê-lo faria tanta falta quanto respirar..quem me conhece sabe.

Eu olhei pra ela e disse; claro.

Comprei o café, entreguei sem nem olhar no seu rosto, dei as costas. Mas eu senti algo diferente, eu olhei por cima do ombro e vi um branco que não era o da camisa dela. Era o branco do seu sorriso. Ela sorriu e agradeceu tanto que parecia que eu havia lhe dado o sol.

Eu não quis saber o que ela fez para estar ali e não era para mim que ela devia uma pena.

Não me sensibilizei a ponto de sentir empatia, mas nesse momento houve uma humanização vivenciada por meio da gratidão.

Poderia ser mais fácil, mais leve. Mas não é.

A estrutura agora vem mudando...paulatinamente.

Viver é como estar num zoológico, mas sem divisões e alas para cada espécie. Mas diferente dos animas podemos sim ser gratos...e podemos também lidar com a ingratidão, só pelo fato de não deixar que impeça de fazer o bem. Há de se fazer sem olhar a quem. Há.

Mas que todos a façam, que todos a receba e assim possamos, um dia. Transceder.

Priscila Ferrer
Enviado por Priscila Ferrer em 05/07/2019
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