Little fish

Ela não sabia lidar com a dor da partida.

O caixão estava aberto e um lençol de flores naturais ornava o corpo que ali repousava com um aspecto de quem ainda dormia.

“Quem me dera se fosse um sonho...” – pensava.

As lembranças vinham à tona como os fogos de São João – festa onde eles decidiram engatar um relacionamento. Sim, como fogos de artifício, com a mesma beleza, grandeza e efemeridade.

Se amaram ardentemente naquele ano, como uma fogueira de São João. Madeira de lenha e fogo alto que aqueciam as noites frias daquele inverno. Um fogo tão alto que aqueceu todas as demais noites frias daqueles pés sempre entrelaçados.

Tinha um sonho – viver um eterno São João ao lado dele. Um recomeço festivo, abençoado pelo santo protetor.

Mas que audácia sonhar com tamanha utopia! A desventura da rotina tratou rapidamente de mudar isso.

“Não aguento mais ouvir esse forró!”

“Nessa quadrilha você é o meu par, só meu.”

“Enjoei o sabor do milho. Bolo de milho, milho cozido, pamonha, canjica... por favor, varie o cardápio.”

É, lembrou-se também da noite do dia 24 de junho e do final daquela festa junina.

Lembrou-se do Sanfoneiro cansado guardando a sanfona também cansada daquele vai e vem constante. Lembrou-se da tia da limpeza lançando para longe as bandeirinhas coloridas. As sandálias de couro estavam gastas, a poeira do salão já havia baixado.

Lembrou-se copiosamente do fim.

“É, ele descansou.”

Já não existia mais festa. Morreu de complicações cardíacas. O coração não aguentou tantos maus tratos do malvado destino e arrebentou num golpe fatal de sofrimento. O pulmão parou de funcionar. O cérebro já não orquestrava o corpo. Óbito.

Ela sentia a perda, mais que ninguém. O São João perdera o brilho. Estava sem o par que a conduzia, mesmo que desengonçado, ao ritmo que transitava facilmente entre a alegria e paixão.

“Vamos fechar o caixão, senhora.” - o óbolo de Caronte era trazido pelo funcionário do cemitério. O barco estava pronto para a passagem.

Caiu em si para a realidade que agora era tão dura. O último adeus, ali. Sentia um arrepio desesperador, sentia a tristeza da alma, sentia medo. Mas o principal: sentia a falta.

Admirou-o longamente, tal como Capitu observava o corpo de Escobar. Os olhos de mar velejavam idas e vindas. As lágrimas, como as ondas, rompiam os arrecifes e transbordavam nas pálpebras. Sentia o grito preso na garganta, mas gritar de nada adiantava. O último fôlego havia partido na manhã da segunda passada. Era como o lamento do canto da sereia esperando o naufrágio das embarcações.

Por fim, caixão fechado. A tampa do ataúde, coberta de verniz, trazia a sentença final.

Aquele velório era diferente, uma despedida íntima, sem familiares ou curiosos. Apenas duas figuras compunham o cenário: uma em vertical, a outra em horizontal; além dos elementos fúnebres que marcavam o ritual de partida da vida para morte.

Não quis vê-lo descer terra abaixo. Não aguentaria.

Pediu que os funcionários fizessem o trabalho e se despediu daquele que um dia a fez tão feliz.

Se existia vida após a morte, não sabia. Sabia, porém, que outro São João viria. E outro, e outro, e outro. Talvez com mais beleza, talvez não. A vida seria, a partir da partida, um grande talvez.

Poderia dar chances ao próximo Carnaval, uma festa solo, da carne e dos desejos. Poderia deixar-se amargurar e definhar em tristeza. Poderia encontrar um outro par. Poderia morrer de saudades.

Seguia em frente. Aquela foto do primeiro São João permanecia protegida na gaveta de calcinhas do guarda-roupas montado por ele no dia da mudança para a casa nova. Vestido xadrez verde nela, camisa básica preta nele, manto de sorriso de felicidade nos dois. É assim que vai recordar para sempre, querido little fish.

Chico estava certo, amanhã vai ser outro dia.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 08/07/2019
Reeditado em 08/07/2019
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