Fora da Bolha

Fora da Bolha



Contemplando o mundaréu um tanto além da membrana viscosa que parece envolver tudo e todos, em alguns instantes é possível se deparar com situações, costumes, pessoas, elementos por assim dizer de subuniversos de escassa insinuação. Vigoraram durante certo período e depois foram atropelados pelo tempo.

Por exemplo, as fichas telefônicas que acabavam bem no meio da ligação feita do orelhão. Ou, caso comum, a gente tirava as letras das músicas em inglês de forma quase que absolutamente errada. E por conseguinte cantava errado. Ou a televisão que saía do ar no último capítulo da novela.

Pelo visto não tratamos mais dessas configurações de entendimento.

Em 1839 na cidade de São Paulo, (capital da província de mesmo nome), vagavam pelas ruas uns poucos tipos de baixa esfera, dados à embriaguez, como o Chora Vinagre, o Manteiga, o Cacoiro e vários outros.

O Chora Vinagre figurara de galã em teatrinhos particulares e recitava trechos dramáticos. Certo dia, em que entrara demais pela cachaça, levou a filha nos braços, debruçou-se à ponte do Tamanduateí, e, depois de declamar uma fala do seu repertório, exclamou: Pobre filha, se hás de crescer para seres desgraçada como teu pai, é preferível que morras. E atirou ao rio a infeliz criança, que por sinal foi salva e carregou até o fim de seus dias o apelido de Chorinha.

Um século e meio depois foi comum chegar na padaria e lembrar com decepção que se esquecera o casco do refrigerante. Ou então, que todas as 36 fotos da festa tinham ficado desfocadas. Sem mencionar as queimadas, porque o rebobinador da câmera enguiçou.

Ninguém poderia saber disso na Paulicéia de 1839. O Manteiga, quando se achava com dois dedos de gramática, o que lhe acontecia quase todos os dias, pregava em voz estentórica sermões caricatos, entoava rouquenho hinos em cantochão e recitava jaculatórias.

Repare que o emprego da palavra era diferente.

Já o Cacoiro, um caboclo magro e pernalto, da chácara do Baruel, vestia uma camisola por cima da ceroula de algodão, chegando esta apenas aos joelhos esqueléticos. Vendia garapa ou melado. Cacoiro! - gritava-lhe a garotagem. Rompia numa descompostura rasa, exaurindo o vocabulário dos maiores desaforos, deixando bem convidado o poviléu.

Era uma vida rústica, diversa da época em que o disco riscava na música preferida ou, quando acontecia de datilografar de modo incorreto a última palavra da página. No início dos anos 1970 as rádios tocaram sem parar, e durante meses ficou inclusive na frente do Roberto Carlos, o hit "I'm so happy”. Música americana, alguns estrebuchavam, entre dentes.

Ninguém sabia que se tratava do Trio Galleta, uma banda argentina que fez das suas entre 1969 e 1975.

Depois do Cacoiro havia ainda o Venerando, que fora empregado numa irmandade e enlouqueceu. Embuçava-se num capote de lã nas horas de menor calor e começava a dar gritos descompassados. Quando alguém chegava a janela para dar fé do que ia passando, dilatava as bochechas com os dedos, fazia esgares medonhos e ameaçava os curiosos com um aipim monstro, escondido sob o capote.

Pensando bem, esse tipo de incômodo ainda pode nos assombrar no presente, mas nos livramos daquela tribulação quando o locutor falava as horas ou soltava uma vinheta bem no meio da música que se tinha esperado horas, senão dias, para gravar. Daí o toca-fitas engolia a fita.

Entretanto, nesse ensaio temerário, pode-se afirmar categórico que o Jibóia não viveu tal realidade. Sujeito baixo e atarracado, envergava habitualmente uma levita, leia-se sobrecasaca, de fazenda sarapintada, saindo com ela à rua, de pé no chão, levantando as taramelas das portas e adentrando nas casas. Então desferia: "Venho aqui mostrar o meu corpo, para que vejam o quanto sou bem feito. Meu umbigo, sobretudo, é um modelo de perfeição, parece feito a torno”.

E erguia a ensebada levita, fato que gerava desconforto nos presentes e ao próprio Jibóia, quase sempre empurrado a pontapés. Comenta-se que, uma vez, levou nas costas valente arrochada.

E esses são alguns componentes fora da bolha, simples adereços similares aos raios da estrela bailarina, nos remetem ao que não se apalpa, mas se imagina, nos deixando quiçá absortos, ou mesmo desconcertados, como acontecia toda vez que aquele locutor omitia o nome da música quando ela terminava, deixando-nos anos a fio sem saber quem cantava ou como se chamava aquela canção que havia tocado o seu coração.


(Imagem: escultura "Mente Aberta", 2006, por Johnson Tsang)






 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 12/07/2019
Reeditado em 01/05/2020
Código do texto: T6694525
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.