A manhã era fria. Inverno batendo na janela em forma de vapor. Cobertor preso no peso do corpo. Um dia típico de inverno até que o telefone tocou:
- Amiga, vem pra delegacia, urgente. Não faça perguntas.
A roupa foi a primeira à vista (meio amassada e de ontem). A bolsa pêga às pressas e o elevador (em manutenção pra variar). Só alguns lances de escada. Oito talvez, correndo esquentou. Carro congelado e lá vou eu... Pra delegacia.
De longe já vejo a amiga que parecia transtornada, mas não sei se de nervoso vinha ao meu encontro rindo.
- O que houve?
- Vem ver, não vai acreditar.
De calça jeans bem passada, camisa verde de botões, cabelo arrumadinho com gel fixador forte e de cabeça baixa até que o escrivão lhe indagou:
- Mas por que você roubou o caixão? O que deu na sua cabeça? Pra que fez isso?
- É que passei em frente, estava vazio e não tinha ninguém na recepção. E o frio está de lascar e minha mãe vive dizendo que não tenho nem onde cair morto. Ia provar pra ela que mesmo desempregado, se morresse não teria que comprar o caixão. Ela é aposentada, seus remédio ficam em torno de 800 pilas, pai morreu há 16 anos e tem 11 meses que não tem nada pra comer lá em casa. Faço bicos. Mas a crise tá brava.
- Mas o que o senhor faz?
- Sou eletricista montador e motorista de caminhão guincho.
- Mas o senhor está com problemas de depressão, toma remédios, usou alguma droga ilícita?
- Não moço, tomo pinga, de vez em quando. Mas hoje é o único dia que estou são, porque pra carregar o caixão não podia estar cambaleando né. Está pensando que sou idiota? Posso até ser bobo, mas burro não!

Enquanto isso a Lu, minha amiga, proprietária da funerária “Te espero amanhã” queria saber quais eram os trâmites para soltar o rapaz, tirá-lo dali. E queria dar o caixão pra ele, pra mãe, sei lá.

Respirei fundo, ainda tentando calibrar o meu navegador mental. Sentei e fiquei pensando se era ou não um sonho. Olhei pra todos os lados e quando voltei à realidade iminente, percebi que na delegacia fazia mais frio que no prédio e era a única de camiseta. “E que o caixão nosso de cada dia” era aquele. Mas pra terminar Clodesnir Pinto Neto perguntou:

- A senhora não tem interesse num caixão? As medidas tem que perguntar pra sua amiga. Posso vendê-lo mais em conta.

Eu ri e não surtei. Por pouco, é claro. Estamos meio insanos... Ou não estamos?


PS. História mote da crônica baseada em fatos reais, nomes e personagens fictícios.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 13/07/2019
Reeditado em 13/07/2019
Código do texto: T6695035
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