Os Escritores de Letras e Números

Na infância é que nos inculcam a paixão pela cultura e o gosto pela criação.

Escritores são os romancistas, cronistas, articulistas, poetas, os filósofos, os dramaturgos, os historiadores, como também os cientistas e acadêmicos em geral. Uns tem na própria escrita o objeto central de seu ofício, outros, se utilizam da escrita para comunicar o resultado de suas especulações teóricas, conjecturas, observações ou experimentos, mas todos se dedicam às letras com grande intensidade, alguns domados pela austeridade da razão, pelo rigor da lógica e pela precisão dos números, outros, embriagados, ébrios, mergulhados no oceano diáfano da matéria de que se faz os sonhos, embalados pelo caudaloso rio das paixões.

Menino, cresci em casa de móveis de jacarandá. Quando experimentamos nossos cem anos de vidas secas e solidão, foram-se os móveis, vieram o pão. Foi uma espécie de naufrágio cósmico que estraçalhou a presença imponente da estante que ficava na sala. Vivia cheia de livros, guardando-os como uma Biblioteca de Alexandria. Incêndio: sem estante, assim como sem Biblioteca, os livros tendem a pulverizar-se. Muitos livros sobreviveram à hecatombe, mas a maior parte foi se dissolvendo sem o móvel de jacarandá que lhe fazia a guarda. A vida coleciona pequenos apocalipses.

Mas o que não se foi, e que jamais irá, o que permaneceu e calou fundo nas fendas mais estreitas de meu espírito, o que se impregnou na nervura de minha alma, foi a intimidade com aqueles “receptáculos” que guardavam tanta ciência e poesia. Livros de minha mãe. E antes mesmo dos livros, foram os manuscritos de Dona Marlene, da Leninha, poemas e crônicas, que me ensinaram, ainda muito moço, que as Letras comunicam beleza e mistério. Havia dentre os manuscritos uma carta à meu avô. Falava de uma saudade doída e comprida, uma saudade goiana, sertaneja, que é uma espécie de dor cheia de dignidade e altivez, não uma melancolia complexa e freudiana, nem uma tristeza neurastênica, mas uma nostalgia cândida, sincera e resignada. A carta falava de uma ausência, de uma falta, de uma impossibilidade de ver a quem se ama. Uma filha separada do pai pelos desertos desmedidos do espaço e do tempo, a lembrar-se dos olhos de um azul diáfano, que temia não voltar a vê-los.

Essa mãe batizou-me com nome de poeta… À minha irmã, deu nome de poesia. Ela também desenhava coisas lindas. Um retrato do Paul Newman, uma índia, sangue tupi, como da canção, um carajás de olhos tristes. Também haviam muitos quadros em minha casa. Óleos sobre tela, gravuras, uma peças indígenas das etnias do sertão goiano, umas coisas de fazenda de dependurar na parede e ficar admirando feito bobo. Ah! Éramos próximos do teatro! Minha irmã fazia um pivete em uma peça que lotou algumas vezes, e “dirigiu” outra, que jamais saiu do papel. Um colega seu, ator, diretor e roteirista, era também agente da KGB, membro de um milhar de ordens secretas, e mentiroso compulsivo. Um rapaz com nome alemão levou os artesanatos raros para fazer de cenário no teatro e nunca mais devolveu. Arrependimento não mata, mas envenena!

Vivíamos tempos de austeridade monástica. Faltava-nos o vil metal em casa para contar. Mas tínhamos os livros, e os quadros, e os manuscritos e desenhos de mamãe, e o teatro da irmã, e as noites e madrugadas ouvindo MPB com o irmão, e também tínhamos o Cléber com seu violão barato, muita beleza melódica, e um sonho lancinante de ser cantor. Tínhamos a música! Ah, com bastante frequência a música preenchia os espaços com seus volumes translúcidos. Música italiana, francesa, brasileira, de tempos e lugares vários. Ouvíamos Elvis e Pavarotti, Elis Regina e Aznavour, e nas tardes de sábado Pepino di Capri chorava por sua Roberta. E como meu tio Cícero era dono de locadora, também era nossa a arte do cinema — e não era só a arte, era também o cheiro do primeiro vídeo cassete e das fitas… Um dia, em um fim de tarde, e nos fins de tarde era comum contemplarmos o espetáculo lírico do céu em transição, o início da noite e suas estrelas cintilantes, absortos e litúrgicos, a esperar a dança das esferas, lemos “O Guardador de Rebanhos”, de um tal fulano de tal, que também escreveu Tabacaria, que lemos também, por que um dos livros remanescestes da estante era um livro de Pessoa. O menino Jesus de Alberto Caeiro transmite o fino da beleza religiosa. Como se pode voltar a ser o mesmo depois de ler Pessoa?

“Os dias eram assim”, e no meio disso tudo, haviam as crises e as guerras, a tragédia e o deserto. Foi então que decidi “ser” “pintor”! Pintei sei lá quantos quadros abstratos, naïfs, surrealistas. A máxima realização era encastelar-me no meu quarto para pintar por horas e horas enquanto ouvia os clássicos. Só parava de quando em quando para ler alguma poesia ou crônica. Não tinha dinheiro. A vida era simples, austera, e uma angústia pulsante pairava no ar, mas era dominado por uma soberba vitalizante, pois estava convicto de que toda aquela privação não era capaz de impedir que eu comungasse das mais elevadas realizações do Espírito ao longo dos tempos, as mais sublimes criações da História! Estava pintando, ouvindo Mozart, lendo Castro Alves, Cecília Meirelles. Havia crescido folheando livros de Van Gogh, Rembrandt, Renoir. Meu pai, economista, dava-me a noção de que, assim como as letras, os números também eram sagrados. Não por que falasse belamente dos números, mas por que me disse que matemática era coisa muito séria quando, impaciente, tentou me ensinar aquilo que não fui capaz de aprender na escola. Acreditei. Era papai.

Não éramos ricos. Não estávamos seguros. Não estávamos em paz. Mas sabia que estava recebendo uma herança espiritual sublime, e que era verdadeiramente afortunado por isso.

Herdei os modos de sensibilidade de minha mãe. É a alma sertaneja, goiana? É a poesia? Não sei. Sei é que — e isso pode parecer estranho ou cândido a quem não é assim — sou capaz de arrebentar de êxtase e alegria e deleite só de fixar a atenção em uma flor, ou de ver, pela enésima vez, os contornos sinuosos de uma montanha. Se passo pela mesma rua todos os dias, vou como se nada demais estivesse acontecendo. Mas de repente topo com uma árvore e sou obrigado a parar, e dá-me vontade de gritar “Bravo! Bravíssimo!”, e me emociono com a missa da natureza, com esse Deus que é todo árvore, e flores e frutos, (“Mas se Deus é as árvores e as flores/E os montes e o luar e o sol/Para que lhe chamo eu Deus?”) vendo aquela sinfonia encarnada, verdejante. É óbvio que “é só” uma árvore, que “não é nada demais”…Mas diga isso depois de reparar no modo como aquele galhozinho retorce levemente para a esquerda, ou aquele tronco gracioso está salpicado de musgos multicoloridos. Caramba!

Talvez digam que é tarde demais para ser um jovem Werther, e gozar desse maravilhamento romântico pela natureza e pela criação humana. “Deixem que digam, que pensem, que falem, deixa isso pra lá”… O que é que têm? O que se há de fazer? Somos assim. A lua, as estrelas, uma folha, uma rua, a tonalidade do sol refletido na fachada de um sobrado, o jogo de luz e sombra de um fim de tarde, tudo isso nos inspira sincera, profunda e indelével admiração.

Hoje avança uma tosca e grotesca ideologia obscurantista, anti-ciência, intolerante, dogmática, persecutória, que se apraz na tortura e na violência. Rezo aos deuses do Olimpo para que esse lodaçal não atinja a casa de minha infância, maculando o templo desse tempo, que, se foi duríssimo, também foi de formação, luta e esperança. Nesse casinha, no mar da memória onde mergulho minha humanidade, cheia de escritores, pintores, atores e cantores, há uma mulher sensível, cuja dignidade da biografia não merece ser maculada pela sanha entorpecente.

Os Escritores de Letras e Números são muitas e muitos, e começam a ser moldados nas olarias da infância.