PAULICEA (AINDA) DESVAIRADA

PAULICEA (AINDA) DESVAIRADA

Nelson Marzullo Tangerini

Volta e meia alguém me pergunta sobre meu primeiro livro, o irreverente e tresloucado Paulicea (Ainda) Desvairada, produção independente, de 1981, e quando voltarei a reeditá-lo. Meu amigo Vilnei Khols, de Porto Alegre, RS, fez uma reedição por sua conta e distribuiu alguns exemplares pelos pampas; outros tantos, mandou para mim. Vilnei é um grande irmão gaúcho, que também andou divulgando por lá a obra de meu pai, Nestor Tangerini, de quem Vilnei é fã.

Não, não voltarei a reeditá-lo. Não desejo reeditá-lo. Na verdade, não gosto de comentar sobre este livro, que, na verdade, não passou de uma brincadeira, um namoro com o Modernismo, quando tentava superar a morte de um amigo, Árgus Mário Paholsy, em 1980. Inclusive, havia nele, também, alguns erros propositais de língua portuguesa, próprios da proposta modernista . De minha parte, não considero um livro sério, embora tenha publicado nele um soneto parnasiano de meu pai, a quem foi dedicado o livro, também dedicado a amigos paulistas, como José Wisnik, em cuja casa me hospedei, com Árgus, na minha primeira noite na Paulicea.

Sobre este livro, porém, gostaria de relatar um fato muito engraçado que aconteceu comigo: como alguns exemplares de Paulicea (Ainda) Desvairada foram abduzidos na Cinelândia e apareceram em Salvador, BA. Volta e meia nossos livros eram levados da feirinha de livros da Cinelândia, centro do Rio, por policiais coniventes com a ditadura, que assaltavam nossas bancas, sequiosos de absorver conhecimento sobre a literatura independente. Até agora, nenhum deles apresentou uma tese de pós-graduação, mestrado ou doutorado sobre o assunto. Pois bem: uma amiga que esteve em Salvador, de férias, posteriormente, trouxe de lá, para mim, um punhado desses livros. Todos eles estavam sem minhas fotos, que foram cortadas do livro e que, provavelmente, foram parar no arquivo de D. Solange, a censora responsável pelos cortes em obras literárias e musicais.

Sobre Árgus, conheci-o na Faculdade Hélio Alonso, em Botafogo, quando estudávamos Comunicação-Jornalismo. Aproximou-se de mim na cantina da faculdade e começamos a falar sobre Beatles e Rolling Stones. Ficamos amigos, escrevíamos para o jornal anarquista O Inimigo do Rei, ficamos sócios da ABI, Associação Brasileira de Imprensa, onde sempre nos encontrávamos e viajamos juntos para São Paulo, em 1979.

Ao chegarmos em São Paulo, Árgus ligou para o Professor e compositor José Miguel Wisnik, que nos hospedou por uma noite em sua biblioteca, nos fundos de sua casa, no Alto da Previdência. Dali, fomos para um alojamento da USP, onde logo fizemos amizade com alguns estudantes, que saíram em busca de colchonetes para dormirmos. Um dos rapazes, cujo apelido era Espanhol, apareceu tarde da noite, com os tais colchonetes.

No anfiteatro da USP, Árgus e eu assistimos a um show histórico de Gonzaguinha. Não demorou muito tempo e estávamos todos cercados por militares do exército, que chegaram em caminhões e nos mostravam que tinham cassetetes prontos para entrar em ação. A ditadura estava nos últimos estertores, mas mostrava que ainda podia reprimir. Gonzaguinha, corajoso, encarou-os e pediu que se retirassem, uma vez que não haviam sido convidados para o espetáculo. E eles se retiraram, enquanto Gonzaguinha recebia aplausos calorosos do público.

Num cinema da Rua Augusta, assistimos ao filme Woodstock; na Praça da Sé, participamos de uma festa chinesa e fomos engolidos por um enorme dragão; viajamos de trem até Jundiaí, para conhecer o Professor de Literatura e escritor Nelson Fioravanti Jr. Dormimos em Jundiaí e, no dia seguinte, voltamos para São Paulo.

Na manhã do dia 1º de abril de 1980, Árgus me telefona e me pergunta se vou à ABI. Digo-lhe que não poderia ir. E Árgus me diz que também não vai. Que vai, então, direto para a FACHA. Mas ele mente para mim e resolve ir à ABI. Sobe 11 andares a pé, toma uma Coca-Cola no bar da Associação e pula do 11º andar.

Estava sentado num banco da faculdade, quando Tinoco, um de nossos amigos, senta-se a meu lado para conversar e me dizer que tinha uma notícia muito triste para me dar. Imediatamente, pensei em Árgus, porque ele não havia aparecido na faculdade. – É sobre o Árgus? – Perguntei. E ele me diz que sim. Eu prossigo: “- Ele morreu?” E Tinoco diz que sim, que ele havia pulado do 11º andar da ABI. Fiquei desconcertado, desconectado. Liguei para minha casa e minha mãe já sabia, porque ouvira a notícia no rádio. Amigos trouxeram água com açúcar para mim.

Muitas vezes Árgus me ligou queixando-se de depressão. Numa delas, me disse, com a voz embargada, que eu era seu melhor amigo. Algumas vezes saí de minha casa e fui até sua casa, em Botafogo, para conversar com ele. Mas nunca pensei que ele chegaria a este extremo. Ele estava triste porque sua ex-namorada, também estudante de jornalismo, havia terminado com ele. E ele a tinha visto com outro. Sugeri que procurasse esquecê-la e procurar outra. E muitas garotas estavam interessadas nele.

Por muito tempo fiquei afastado da ABI. Não passava nem na porta da instituição. Na Rua México, onde seu corpo caiu, nem pensar. E até hoje não entendo porque aquele futuro grande jornalista e poeta desistiu da vida. E penso ainda: Se eu tivesse ido à ABI, naquela manhã, teria impedido Árgus de desistir de sua vida?

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 15/07/2019
Código do texto: T6696506
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.