O FRIO QUE MACHUCA MAIS QUE O INVERNO

Eram sete e cinco da manhã e o movimento na rodovia já era intenso. Por ali passavam cristãos, muçulmanos, hindus, budistas, judeus. Por ali desfilavam as mais variadas pessoas, das mais diversas crenças e classes sociais. E La estavam eles, dois meninos sujos de poeira, mal vestidos. Um deles aparentava pouco mais de 12 anos de idade e o segundo, menor ainda não chegara certamente aos 10. O maior sentado no meio fio, ironicamente perto de uma pequena capela, enquanto o menor, do lado, colocava a cabeça nas pernas do outro, que fazendo um gesto de proteção pousou a sua mão no ombro do que estava meio deitado. Era nítido que passavam frio. Um ainda tinha uma pequena blusa de manga comprida, mas o outro sequer isso. Ambos descalços, e com a absoluta certeza estavam até aquele momento sem comer. Passei por eles e uma dor no coração que me deixaria pensando o resto do dia. Também não fiz o correto porque deveria ter parado e socorrido os dois meninos de imediato. Mas a primeira reação foi de vir para o centro da cidade e procurar as autoridades da área que rapidamente se dispuseram a procurá-los e socorrê-los no que fosse necessário. Não obstante a isso voltei depois ao local com pão, leite e biscoitos mas não mais os encontrei. Foi hoje um dia totalmente perdido em minha vida. Perdi a oportunidade de estender a mão a duas crianças visivelmente necessitadas, na preocupação de procurar as autoridades, até por julgar que o socorro que delas viria seria mais efetivo e eficaz do que o que eu poderia prestar naquele momento. A imagem dos dois garotos ainda não me saiu da mente e fico pensando em quanto tempo estão a passar frio e fome, se são crianças sem rumo ou lar, se são apenas passantes ou moradores da cidade, se sofrem além do frio e da fome a pior dor que alguém pode sentir, o abandono. Fico eu aqui perplexo com minha indiferença e quando olho para aqueles pães e biscoitos que não entreguei naufrago no meu próprio fracasso como ser humano, independente da crença que tenho. Fracassei com pessoa, como homem, como cristão, porque me preocupei muito mais com a burocracia política do que com o estender de mãos. Lembrei-me das palavras do saudoso Betinho: quem tem fome tem pressa. E eu simplesmente não levei isso em conta. A imagem dos meninos ainda me está na mente e certamente não se desligará tão facilmente de mim. Fui acomodado, inseguro, e até porque não dizer injusto. E estou a pensar agora, como a noite terei coragem de no meio das minhas orações agradecer a Deus pelo meu dia, se ele me deu a oportunidade de estar mais perto dele e eu por comodismo a desperdicei. Me desculpe meu Deus e os deuses de todos aqueles que assim como eu estiveram indiferentes a cena dos dois garotos. Me desculpem vocês, meninos, porque sofrendo o frio do inverno ainda sofrem com o frio da indiferença humana. Que além da fome convivem com a frieza dos corações atarefados e atrasados para suas obrigações particulares e se esquecem que o essencial é a vida, de quem quer que seja, e na situação que esteja. Tenho certeza que Deus Irá me perdoar. E que talvez os meninos jamais saibam do meu pedido de perdão. Mas assim como quero o perdão do Deus também tenho que entender o que o filho dele disse quando esteve por aqui: todas as vezes que fizeres isso a um dos meus irmãos menores foi a mim que fizeram. E ainda que aprenda de uma vez a lição dada a Maria Madalena: Vá e não erres mais