A chegada

A tarde estava perto do seu fim, o sol estava se pondo e as comadres já tomavam banho para rezar o terço das seis horas, ela fazia o dever de casa, os cabelos bagunçados e a roupa amassada, davam indícios de um recente cochilo, ainda estava sonolenta, mas levantou assim que ouviu.

No fim da rua o Gol azul dava as caras, os buracos da rua sem asfalto o faziam balançar e o som rouco do motor anunciava, para a pequena, que o pai estava quase em casa. Ela corria para a janela, o coração alegre por estar vendo o pai depois de meses, a mãe já se apressava para abrir o portão e permitir que o carro entrasse.

A criança não conseguiu esperar o homem sair por completo, assim que viu a porta do motorista sendo aberta, jogou o corpo franzino nos braços do pai, a farda camuflada do mais velho cheirava a borracha queimada, mas ela não prestava atenção, estava mais preocupada em matar a saudade, o militar, por sua vez, não demonstrava tanto afeto assim.

A esposa com um pano de prato no ombro e uma expressão cansada presenciava a cena com o coração apertado, a filha amava o pai incondicionalmente. Ele deixou o carro e foi até a esposa, um beijo superficial e sem afeto selou a sua chegada, a filha em um dos braços e a mala no outro, no som do carro ainda tocava algum pagode dos anos 90 e no espelho eram penduradas as pulseirinhas que a esposa trazia das viagens com a caravana da igreja, mas ele não tinha coragem de usar.

A menina desceu dos braços do pai, saiu correndo para pegar o seu primeiro dente de leite que havia caído, guardou por semanas esperando a volta do pai, o homem pegou o dente e pediu que a pequena abrisse a boca, ela o fez e recebeu um afago na cabeça, acompanhado de um sorriso meia boca. A mãe mais uma vez assistia a cena de coração apertado, aquela pobre coitada só vivia de coração apertado.

O dente foi devolvido e a criança murchou, esperava uma reação mais animada, o pai deveria estar mesmo cansado, mas havia preparado uma surpresa ainda melhor para animar o mais velho, na escola todos fizeram canecas para presentear os pais, ela pintou a sua com o maior amor do mundo, esperava que dessa vez ele gostasse, os presentes anteriores não foram bem aceitos.

Uma camisa com a foto dos dois e "Papai, eu te amo!" Escrito em letras garrafais, era larga demais, depois um mini banner com uma foto da filha em formato de coração, a mãe foi quem pendurou na parede, depois uma camisa com desenhos feitos pela garotinha, mas ela escreveu "Spot" ao invés de "Sport" e o pai achou um desrespeito ao time do coração, agora a caneca não tinha como falhar.

O jantar estava pronto, a criança banhada, a esposa de coração apertado e o marido deitado, foi chamado para comer na mesa de jantar, mas alegou estar cansado demais e assim as duas jantaram sozinhas, como era de costume. Ao anoitecer, o homem saiu do quarto para pegar uma cerveja e ver o jogo de futebol, o clássico brasileiro, tomou o seu lugar no sofá como se fosse um rei e começou a beber, as horas foram passando e o sono misturado ao álcool faziam o seu trabalho, o homem estava derrotado, quase dormindo no sofá, a televisão ligada e a filha inquieta.

A ansiedade da criança incomodava a mãe que, sabendo do comportamento do marido, propôs que o presente fosse dado uma outra hora, mas a criança bateu o pé, estava decidida a agradar o pai, pegou a caneca embrulhada e foi até a sala. Se deparou com o pai quase adormecido, a lata de cerveja quase escapando da mão, mas ela não desistiu, foi acordar o pai que arregalou os olhos vermelhos e continuou com uma expressão perdida.

As pequenas mãos estenderam o embrulho colorido, o cérebro embriagado demorou para assimilar as coisas, mas quando percebeu o presente, pegou, desembrulhou, analisou e soltou uma risada um tanto irônica. A garotinha perguntou num tom doce se o pai havia gostado, obteve um "Obrigado, minha filha" embolado, concluiu que ele tinha gostado, se o pai estava feliz, ela também estava.

Viu o pai passar a cerveja da lata para a caneca e se animou, ele já estava usando! E lá foi contar tudo para a mãe, a animação infantil contagiou a mais velha que até ousou sorrir.

Horas mais tarde, já estava quase na hora da menina dormir, pediu a benção para a mãe e foi lhe dar um beijo de 'Boa noite', mas as duas ouviram um estrondo preocupante na sala, ao chegarem no cômodo, a caneca estava ao chão, despedaçada, cerveja para todos os lados, o corpo inerte do pai não se afetou nem mesmo com o barulho alto da cerâmica se quebrando, estava estirado no sofá, a criança derramava algumas lágrimas, a mãe consolava com o coração apertado.

No dia seguinte, tudo estava limpo e arrumado, os adultos seguiam as suas rotinas, mas a garotinha permanecia triste, a caneca estava quebrada e o pobre coração infantil também.

Brenda Nascimento
Enviado por Brenda Nascimento em 24/07/2019
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