ÁGUA QUE PASSARINHO NÃO BEBE

ÁGUA QUE PASSARINHO NÃO BEBE

Noutros tempos era costume, uma vez por ano um seleto número de alunos do último ano do primário, indicado por sua professora, percorrer os lugares da minha Terra em peditório a favor dos estabelecimentos hospitalares que se dedicavam ao tratamento daqueles que tinham contraído a tuberculose. Disse da minha terra, pois não sei se nas outras terras também havia essa prática.

Naquele ano, eu mais dois colegas, o Carlos e o Manuel Laranjo, laranjo era o apelido, fomos os escalados para tão meritória e honrosa tarefa. Começaríamos pelo extremo sul da freguesia, a aldeia do Covo. Na volta passaríamos novamente pela Felgueira, que ficava no caminho daquele.

Mas no caminho havia uma delícia de água que passarinho não bebe. Melhor se fora uma pedra, do Drumond, que a esta saberíamos contorná-la. Mas no lugar de uma pedra no caminho, havia a tal água não nascida de uma lapinha, mas de uma fruta deliciosa chamada medronho.

Nessa fabriqueta a que também chamam de destilaria, fomos recebidos alegremente pelo pessoal ali presente, que sem delongas, trataram de nos matar a secura pelo esforço da subida da serra. Gente boa aquela!

Eu nunca tinha provado da tal bebida porque meu pai com certeza não mo teria permitido; e não é, que gostei e achei aquilo uma delícia? Sem estar acostumado, excedi-me na medida, achando que meus companheiros, me acompanhavam na degustação, mas os mesmos fingiam que bebiam. Pronto, escusado será dizer que peguei uma violenta carraspana, ao ponto de ser amparado por eles, os meus ‘amigos’ companheiros. Interrompida a épica viagem do bem fazer, o remédio era retroceder e voltar para nossa casa.

O Carlos, meu melhor amigo de infância, mas como disse, um tremendo velhaco, me fez cair na armadilha, e gozava do meu estado de embriaguez . Num instante de lucidez que ainda me restava qual luz que rompe a treva, ao passar por um regato, de água límpida e fresquinha, veio-me à mente que certa vez meu tio Amaro dissera que o melhor remédio para curar uma bebedeira era deixar de molho por alguns minutos em água fria ‘aquelas partes’ submersas na água. De supino arriei as calças e entrei na água que achei uma delícia; acontece que bem acima desse pequeno remanso que se fazia naquele local, havia um ninho de ferozes vespas pendurado num galho de árvore que se debruçava sobre o mesmo . O Carlos, resolveu atiçar com uma vara o vespeiro, que de imediato respondeu à provocação mas, em vez de me atacar, como era de se supor, furiosamente o pequeno e aguerrido exército desceram sobre ele em fúria, que o fez disparar pelo caminho afora aos trambolhões sem pernas a medir para se livrar de tão temido exército voador.

E o milagre dos tomates na água não, não aconteceu!...

Como que por milagre, não tive uma única ferroada, apesar da nudez exposta das minhas nádegas. Chamem a isto milagre se quiserem, mas mais uma vez meu Anjo da Guarda me valeu em momento complicado e nunca antes experimentado. Chegamos, enfim, à casa dos pais do Laranjo, na aldeia de Guistolinha. Os pais do Manuel terão me dado a beber um forte e amargo café, no intuito de cortar ou amenizar a ação etílica; entretanto, outro canalha, o Zé Corneta, Corneta também apelido, primo do Laranjo, e mais velho que nós, resolveu pôr-me de cabeça virada para baixo. Como seria inevitável, toldou-se-me ainda mais a consciência, sorte que vomitei toda a porcaria. Que me lembre foi a primeira e única vez que vomitei. E por longos anos nem podia ouvir sequer o nome de aguardente. Enfim, passado todo aquele imbróglio, dormi o sono dos justos povoado de sonhos azuis.

Avisados meus pais, lá foram por aqueles difíceis caminhos noturnos à luz de candeeiro, minha mãe e meu tio Manuel para me buscar, cuja volta para casa aconteceu só ao outro dia de manhãzinha. Envergonhado, lá vim eu com minha doce mãe e meu amigo tio, temeroso pelas repreensões ou algum outro castigo de meu pai ou de minha professora.

Para minha surpresa e alívio, não houve repreensões e nem castigos. Aquele silêncio foi como um soco no estômago, pois me sentiria mais aliviado e de consciência menos pesada, se tivesse tido uma repreensão severa, mas pedagogicamente foi bem melhor assim, pois acho que às vezes o silêncio faz coisas a que palavra alguma pode se igualar.

Talvez lá no fundo de seus corações tenha irrompido uma sublime ternura por aquele ainda quase menino a desabrochar para um mundo tão cheia de surpresas e armadilhas, mas também de doces momentos para recordar ao longo dos caminhos da vida, como este, que embora nada doce, é de uma força tamanha muito para lá das palavras e de seus significados.

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 26/07/2019
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