Atrasado

Acordei. Era cedo acho, umas oito talvez pois os pássaros ainda cantavam jubilantes por mais um sol que os infestava de calor ou eram apenas os filhotes chorando pelo café, não sei dizer. Sei que eu não estava nada nada jubilante, pelo menos não pra sair voando por aí afora como os passarinhos pais afoitos para ceifar logo as obrigações, estava mais pra filhote, chorando pra ficar quietinho e querendo comer comida boa na cama, sem preocupação. Queria, no máximo, levantar poucos segundos e resolver tudo de uma vez como um "zás!" e aí voltava a deitar na cama. Prefiro ficar deitado apenas, ao contrário de alguns que querem simplesmente dormir os infinitos cinco minutinhos eu fico mais pensando enquanto olho para o teto. Penso na vida, nas pessoas, nas metas do dia, do mês, do ano, enfim, no que eu tenho que fazer, mas aí vem o fato de que eu tenho que acordar pra ir pro trabalho... estas metas eu costumo pular, além do que a única meta que eu vejo no meu trabalho é quanto falta pra acabar o mês pra eu receber o salário e como eu devo me portar no serviço pra ganhar mais dinheiro ainda. Já que estamos no trabalho e eu fiz a analogia dos pássaros, que se prova útil agora igualmente, vou reciclar essa idéia. O que eu não gosto muito no meu trabalho é que todos os chefes do departamento são como os pássaros filhotes, ávidos por um resultado satisfatório mas não especificam exatamente o que querem que façamos, só sabem falar no resmungês, e a gente que se vire, os pássaros pais, pra fazer o que os resmungentos querem. O engraçado é que, igualmente aos pássaros, os chefes só resmungam, só cobram serviço, quando o "chefão" aparece pra ver como está andando o serviço, quando eles estão sendo vistos. Depois que o chefão está circulando por aí e eles já mostraram que estão "ralando peito", ficam numa boa, relaxados.

Acho que o maior problema do trabalho é esse mesmo: que ele é o exato oposto da vida. A vida é uma graça e o trabalho uma desgraça. A vida começa no bem-bom e à medida que você vai progredindo vai começando a ralar e ralar e a sua vida vai começando ali. Trabalho não, você começa lascado e à medida que vai progredindo e começa a ficar no bem-bom a sua vida acaba, no mínimo a social e talvez a familiar. Na vida a gente é dono da nossa própria riqueza: a saúde do corpo. No trabalho a gente é escravo da riqueza dos outros: o vício do dinheiro. Pensando melhor vejo que não é o exato oposto na totalidade. Existem algumas coisas bem semelhantes entre os dois, como o fato de os dois nos darem oportunidades, nós conseguirmos crescer dentro dos dois, amadurecer, é possível se aproveitar dos outros e ter seus talentos aproveitados em benefício alheio igualmente e o fato de que o único jeito de fazer dinheiro rápido trabalhando é entrar num cargo público e na vida é entrar na vida pública (seja se prostituindo pra sacanear os outros [político] seja pra ser "sacaneado" [prostituta]). O trabalho tem muito em comum com a vida, acho que a única real diferença entre os dois é que um quem criou foi o homem e o outro as religiões estão tentando descobrir.

Acho que nessa profunda reflexão onde eu fui devem ter ido embora umas duas horas ou, torço, quatro e já ser hora do almoço, tendo eu a infeliz e fingida obrigação de chorosamente informar ao escritório que não pude e nem poderei comparecer talvez devido a uma gripe repentina que inventei agora, tirando a parte da invenção. Esse é o tipo de sonho que eu não viso ter pois eu obviamente, prático que sou, desejarei voltar para o mesmo onde não são mais aparentemente oito da manhã e sim certamente onze e meia. Mas ligo o celular e aguardo temeroso a tela com as horas aparecer e, para a minha desgraça, são meras oito e vinte, o que se eu não tomar banho nem café-da-manhã, me arrumar e dirigir igual um louco por um trânsito de vias favoráveis me deixa apenas quinze minutos atrasado, uma cota mais do que tolerável hoje em dia, se isso não se repetir muitas vezes na semana.

Poderia mostrar este texto ao chefe e dizer o quão produtivo posso ser deitado na minha cama, mesmo que isso me atrase e me faça ir "fedendo" para o trabalho. O que provavelmente o fará dar uma olhadela pra mim e dizer algo sobre o fato de eu ser escritor nas horas vagas não ser de serventia nenhuma para a empresa, a menos que eu queira trabalhar em outro lugar. Aí começa a tal imposição do poder, a lição do dia, a transmissão de conhecimento, o sermão desgraçado...

Esse tipo de coisa me faz o xingar nas trevas...

...ou pelo menos quando ele não está ouvindo.

Lúcio de Moura
Enviado por Lúcio de Moura em 27/09/2007
Código do texto: T671003