Crônicas de Pai para Filho - Cabeça de Velho

Não era exclusividade da minha família ter atavismos de loucura. Meus antepassados apenas se destacavam entre a multidão de excêntricos.

A mais bela das esposas tinha na família alguns excêntricos incorrigíveis. Meu sogro era um deles.

- O que são aquelas frutas brancas?

- São ameixas pretas.

- Ameixas pretas? E por que são brancas?

- Porque ainda estão verdes.

Esta foi um das muitas conversas que tive com ele.

Este centenário homem que já nos abandonou do convívio terreno, sempre que me encontrava, me premiava com uma antologia de suas melhores aventuras.

Todas elas muito verídicas apesar de não conterem nem um pingo de verdade.

E havia um agravante: cada vez que ele narrava uma história, havia acréscimos ou mudanças de detalhes.

Não o fazia por falta de carácter, apenas lhe faltava memória e lhe sobrava imaginação.

- Sabe como é cabeça de velho... - me diziam, e eu não atinava. Ficava sem entender.

Há quem defenda a tese de que a idade cria na mente do homem, um labirinto confuso de memórias.

Eu sou um romântico, e acredito que nesse labirinto, o homem além das lembranças, acrescenta desejos e sonhos que o mundo lhe impediu a realização. Mas o homem, invencível, os realizou em imaginação.

Aprendi com ele, não apenas lições de moral ( estas, os antigos têm muito mais que nossa geração preguiçosa ), aprendi também, lealdade à família.

Ele amava a todos, da maneira que era permitido aos homens da época em que "homem não chorava". A prova estava estampada no rosto coberto de rugas.

Seus olhos se molhavam constantemente, ao pegar um neto no colo, em uma conversa sobre o passado, ou até mesmo quando ele visitou minha casa pela última vez.

Muito embora, tentasse sempre esconder dos demais o choro ( afinal, homem não chora ), ele aprendeu na velhice, a importância de uma lágrima vertida.

Eu aprendi com meu pai, que se homem não chora, então não éramos homens, éramos bem mais que isso.

Coube a mim, dizer as últimas palavras e fazer a última oração na sua partida, a pedido de meu cunhado.

Cunhado esse, que havia anos, não nos falávamos. Mesmo na sua partida, não sei bem como, o velho nos reconciliou. Ele era leal a família.

Eu não atinava, ficava sem entender.

Aos poucos todos vão partindo, me deixando ao lado das lembranças.

Talvez, esteja reservado para mim, realizar a despedida de todos, e partir sem ter de quem se despedir...

Mas isso é apenas uma coisa que me passou pela cabeça.

Mas agora eu ando atinando.

Sabe como é cabeça de velho...

Tarciso Tertuliano Paixão
Enviado por Tarciso Tertuliano Paixão em 12/08/2019
Reeditado em 16/09/2021
Código do texto: T6718343
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.