Linha 206

A agitação tomava o coletivo. Pessoas impacientes pós-rotina de trabalho, impacientes pelo tempo de espera, impacientes pelo desserviço dos serviços públicos e privados, impacientes pela exaustão dos corpos e do espírito, impacientes, impacientes, impacientes... Pessoas que respiravam, além do oxigênio, o ar tóxico e perturbador da insatisfação.

Eram seres comuns, como eu e você, marcadas pelo anonimato e, sobretudo, pelo manto da invisibilidade social.

Eu estava lá. Inconscientemente, comecei a acompanhar atenta o movimento dos ambulantes tão cansados quanto as molas enferrujadas daquele motor barulhento. Vendiam pipocas, doces aos montes, água mineral. Esgueiravam-se como borracha para passar entre os passageiros que encontravam-se no corredor do ônibus.

Mochilas, bolsas, livros, sacolas. Via braços e pernas que aparentavam o ápice do cansaço.

Na verdade, a atenção faltava-lhes. Digo, faltava-nos. Eu estava lá também. Mas permita-me especificar tal atenção: não me refiro àquela em que um filho se joga em direção ao chão em troca de um afago gentil do pai relapso, falo da atenção respeitosa e deliberada. Falo sobre a ausência do olhar superior deles, do olhar superior Dele. Falo sobre o descaso do salário compendioso e atrasado, sobre as precariedades diversas, sobre a ânsia diária por dias melhores.

Eu estava lá e sentia também.

Na ausência desse olhar cativo, os olhares baldios daquela condução indicavam o esgotamento mais danoso que o homem pode experimentar. Não sou vidente - longe de mim assumir tal posto - mas atrevi-me à possibilidade psicológica da análise. Observei o homem de quase 50 anos, com uns 25 anos de trabalho nas costas, levando consigo uma pequena sacola de compras nas mãos. Vi também a moça que trabalha na loja do shopping, aquela loja que a submete a passar o dia inteiro correndo de um lado para o outro com uma pequena pausa de 1 hora de almoço e um salário comercial na conta corrente, mensalmente, a cada dia 10. Vi o aluno com a fardinha do colégio, ele também me viu, eu estava lá. Nos cumprimentamos com um leve balançar de cabeça, um sorriso contido e um olhar silencioso.

Temos aqui a narrativa de um tempo totalmente psicológico, meu amigo. Não sei ao certo quantos minutos durou o turbilhão de "feelings" que consternou meu coração, mas senti profundamente o peso da consumição taciturna. A inquietude dos olhares desconhecidos que se entrelaçavam durante o trajeto era desconcertante.

A quantas paradas estavam os sonhos daquelas pessoas?

Eu estava lá.

Por alguns minutos senti minha alma sucumbir. Decidi então fechar os olhos e me concentrar no som aleatório que vinha do fone de ouvido. Na adrenalina do transporte público pelas ruas esburacadas da cidade, Criolo imperativamente dizia para convocar meu Buda.

"Convoque seu Buda, o clima tá tenso." Mas que ironia, Criolo doido. Deixe Buda fora disso.

"Ao trabalhador que corre atrás do pão é humilhação demais que não cabe nesse refrão."

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 20/08/2019
Reeditado em 21/08/2019
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