CONTADO POR MEU PAI

Na calçada da frente lá de casa, em Helvécia/BA, depois da janta, enquanto minha mãe, tias e amigas ouviam pela Rádio Nacional a novela O Direito de Nascer, meu grandioso e sábio pai, seu Jonga, aproveitava para contar casos. Ele sentado e recostado numa cadeira preguiçosa, eu meus irmãos, primos e amigos disputávamos lugar nos dois bancos de madeira sem encosto arranjados em forma de “V” para não perdermos os gestos e a ênfase. Além disso, as palavras eram bem pronunciadas, com o “R” em seu som original assim como os plurais com suas corretas desinências e flexões gramaticais perfeitas. Saberia mais tarde que aquelas histórias, tão floreadas e cheias de detalhes, eram inéditas, frutos de sua criatividade, na maioria das vezes, no improviso do momento.

Quem sabe, seja por isso minha alegria em contar histórias em forma de crônica. Aqui vai um caso lembrado de seu Jonga que lhe peço licença para recontar.

Ainda menino em Porto Seguro/BA, onde seu Jonga nasceu e se criou, conhecera um índio pataxó, chamado Beré, que morava junto a sua aldeia nas brenhas além Arraial d’Ajuda. Quase toda semana, em dia ensolarado, Beré, acompanhado de sua esposa Naiá e do filho Jeri, de 10 anos, atravessavam o rio Buranhém em pequena canoa e apareciam na cidade.

Beré e sua família faziam questão de ostentar sua natureza índia, tinham o corpo cuidadosamente pintado com urucum, jenipapo e tintas obtidas do pau-brasil. Na cabeça cocar de três penas em cores vibrantes prendiam seus longos cabelos negros. Não lhes faltavam colares caprichosamente confeccionados com variadas contas coloridas pendurados no pescoço e expostos no peito aberto. Pai e mãe vestiam tanga feita de pele de veado que ainda preservavam os pelos castanhos e negros; Jeri usava calça curta ornada com penas. Beré trazia nos ombros e nas costas um reluzente arco feito de tucum mais um amarrado de flechas de taquara com penas colorida. Numa das mãos portava atraente lança cuidadosamente coberta de finos cipós multicoloridos. Naiá carregava um embornal, contendo peixe seco, farinha e banana; na cintura, amarrado num cinto rústico levava uma pequena cabaça com mel de abelha como complemento alimentar para o trio. Os três pareciam artistas vestidos e paramentados para uma apresentação circense. Figuras conhecidas e aguardadas principalmente pela gente miúda da cidade.

Na falta de circo, eles faziam a diversão. E atraíam grande plateia. Muita gente interrompia os afazeres, os compromissos, tirava a panela do fogo e deixava suas casas para assistir ao espetáculo oferecido por Beré, tendo Naiá e o pequeno Jeri como assistentes. A família índia elegia como arena um espaço mais alargado à sombra de uma ibirapitanga (pau-brasil) na Rua da Praia próxima à venda de Genaro, quem lhes fornecia água de beber, casinha para as necessidades e algum alimento, além de abóboras e coités verdes para o espetáculo.

Por volta das dez horas Beré, imponente de pé com as pernas afastadas e braços abertos anunciava sem dizer palavra sua performance. Como primeira mostra atirava uma flecha ao ar e ela, ao cair verticalmente a uns quarenta metros, encravava-se no toco úmido de uma palmeira imperial ceifada a um metro de altura.

Naiá recolhia a flecha deixando em seu lugar uma abóbora verde. Beré sacava outra flecha de seu feixe, passava-a nos lábios como se a estivesse lubrificando, armava solenemente o arco e flecha e, mirando a abóbora sobre o toco, atirava para atravessar o alvo com impressionante precisão. Algumas senhoras gemiam e se contraíam a ver a fruta defluir suco em suas feridas. Esse mesmo ato era repetido mais duas vezes, uma deitado no chão e armando o arco com os pés. Outra, mais ousada, de costas para o alvo. Como se não bastasse, assentava-se num improvisado balanço pendurado no galho da ibirapitanga por um único cipó. Movimentado fortemente por Naiá, ele superava o vai-e-vem e o rodopio para, de lá, para desferir sua flechada e acertar com incrível precisão mais uma abóbora no toco da palmeira.

Descansava um pouco, bebia mel e água, limpava o suor da face, agradecia a plateia e preparava-se para mais um número. Pedia a Naiá para, a certa distância, atirar para o ar coités verdes pouco maiores que uma laranja; alvejava-os em movimento no ar.

Assim que a brisa parava de soprar, finalizava sua apresentação, com um surreal número: atirava ao ar uma flecha especial, mais comprida, e agarrava-a, durante sua queda, antes de atingir o solo, com um golpe de espantosa rápidez.

Agradecimento e apoio, além de ensurdecedoras e demoradas palmas, chegavam em forma de caiambá (moedas) ou de mamguti (gêneros alimentícios) que eram recolhidos em cestos de cipós e guardados na venda de seu Genaro para serem transportados à aldeia em oportunidades, na medida da capacidade dos três.

Seu Jonga (meu pai) acrescentou que soubera, quando já morava em Ponta de Areia, da morte de Beré, bem como do justo funeral e das homenagens póstumas que lhe foram oferecidas pelos moradores.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 24/08/2019
Reeditado em 24/08/2019
Código do texto: T6727911
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