TEMPO BOM

Como dá prazer relembrar tempos vividos e curtidos com alegria e felicidade. Tive o prazer de experimentar esses tempos em várias oportunidades. Marcante foi quando morava na Vila Planalto, em Brasília/DF, a qual já descrevi na crônica “Nossa Turminha”. Que gente agradável! Quando leio a analogia da vida com uma viagem de trem, a bordo de um vagão onde embarcam e desembarcam companheiros e amigos, logo me vem à lembrança a turminha da Vila Planalto, do Clube da Rabelo, até do Clube Motonáutica, este iniciando na ocasião em que eu desembarcava deste para pongar n’outro vagão. Dei o nome a esse vagão de TEMPO BOM.

Justas e alegres lembranças de inesquecíveis pessoas que hoje – nesses tempos bicudos - fazem falta no cenário social de nossa terra. Gente de boa índole levando a vida como numa animada viagem coletiva, com conversas saudáveis, serestas, festinhas mansas de fim de semana e da prosa agradável das frescas matinais domingueiras. De tão raro e marcante o TEMPO BOM, exercitei a memória para resgatar e tentar identificar que fatores nos propiciavam tão afortunada agregação social. Lembrei-me, dentre tantos, de oito cuidados ou comportamentos comuns a todos nós que me fazem aqui ressaltar:

primeiro, não alimentávamos fofocas que pudessem manchar ou minimizar valores morais de qualquer amigo ou de suas querências, muito menos criar constrangimento e ambiente de ressalvas;

segundo, não falávamos de assuntos controversos que pudessem ensejar diatribe no grupo, mesmo reconhecendo a diversidade de preferência política e social;

terceiro, não tentávamos convencer o outro das verdades pessoais de cada um, nunca aquela frase impositiva: “estou certo ou não?”;

quarto, não ambicionávamos nem disputávamos nada, cargo político, emprego, hegemonia ideológica, liderança ou qualquer outra coisa, nem namorada, tampouco herança;

quinto, não ostentávamos vaidades, nem jactávamos vantagens, nome de família, origem, capacidade intelectual, grau acadêmico, segurança financeira, superioridade, situações privilegiadas e outras comuns onde um se pretende mostrar melhor ou mesmo mais sortudo que o outro;

sexto, não nos criticávamos negativamente, nem a boca miúda;

sétimo, não buscávamos saber do outro seus ganhos financeiros, a dimensão de seu patrimônio material, nem seus segredos pessoais;

oitavo – e, segundo Jorge Amado, o mais importante para preservar uma boa amizade – não pedíamos dinheiro emprestado uns aos outros.

Nossa turminha era, por quem conosco convivia, reconhecida como avessa e imune a arrelias desagregadoras. Às vezes, no ambiente de gracejo, fazia-se uma inocente chacota de alguém, reconhecidamente sem maldade.

Muita moças participavam de nossa turma. Não éramos um “clube do bolinha” nem rezávamos por cartilha excludente. Qualquer um ou uma que se aproximasse era bem chegado(a) e não tardava a ser bem amado(a). Contudo não cortejávamos os que destoavam de nosso padrão sócio comportamental.

Com essa aura, fácil era chegar-se a consenso para a definição de atividades e de programas coletivos, tais como festas dançantes, geralmente animadas por “Raulino e seu Conjunto”; quermesses juninas, com casamento na roça, quadrilha comandada por Luzardo e muita comida típica regada a quentão; churrascadas e piqueniques na beira do rio ou na propriedade rural de gente conhecida; presença, na qualidade de convidados, na festa de alguma outra comunidade que nos convidava para alegrar e animar o ambiente etc.

Desses eventos, não há como deixar por menos as animadas e atrativas serestas. Na maioria das vezes, uma roda musical no próprio Clube Rabelo ou cantorias itinerantes pelas ruas descalças e enluaradas da Vila, fechando as altas horas do dia ou sonorizando as madrugadas, a prestar homenagens às moçoilas, aos casais e pessoas simpáticas da comunidade. Vale destacar os que nunca deixaram de abrir a janela para acolher nosso canto. Dona Neném e seu Romeu Casadei, a família de seu Nadim e a linda e simpática esposa do engenheiro Murilo que fazia seu esposo arder de ciúmes ao cantarolar conosco, de sua janela. Um detalhe importante: todos cantavam bem, até Gaguinho, aquele da língua presa. É que em nosso grupo não cabiam críticas desabonadoras.

Curioso é que nos reuníamos mesmo sem qualquer motivo outro que não fosse de estarmos juntos. Para contar e comentar novidades, saber notícias de quem viajara ou acabara de regressar, ouvir o último LP adquirido por alguém, jogar cartas, palitinhos e escravos-de-jó, contar anedotas, improvisar quadrinhas rimadas falando de nós, de nosso ambiente, da cidade e do mundo.

Pena que nosso TEMPO BOM, vagão puxado pelo trem da amizade, da concórdia, do respeito e da alegria fora se esvaziando aos poucos. Uns casaram, outros mudaram da Vila ou de Brasília, do país ou mesmo desta vida. O certo é que ninguém dele apeou por desavença ou desgosto, por intriga ou futrica.

Hoje, para uns, TEMPO BOM possivelmente esteja parado, abandonado, esquecido n’algum desvio da linha da vida; para outros, ainda íntegro, coberto e cercado de cores e humores que cada uma de nossas almas nele deixou. Suas janelas, nunca esquecidas, foi por onde vimos o tempo passar ou nos vimos passar pelo tempo (com a licença literária de Catulo da Paixão Cearense).

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 24/08/2019
Reeditado em 24/08/2019
Código do texto: T6727913
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