Sobre Ontem.

Ontem, como me é de costume, fui correr à tarde. Corri uns três quilômetros até me deparar com um senhor na esquina me acenando para que eu fosse até ele. Fui, logicamente. Tratava-se de um senhor de 79 anos de idade e que desde os 16 trabalha como borracheiro naquela mesma esquina. Inicialmente com seu pai, e depois sozinho. Sempre sozinho. A esposa o abandonara pela luxúria e ostentação. Ainda esbelta e dada, deixou o marido carcomido, que é treze anos mais velho, logo que as duas filhas do casal se tornaram independentes.

Ele ficou lá pregado naquela esquina, sentado em sua cadeira, a única porta de sua borracharia aberta pela metade, a parede azul descascada e o tempo e o sofrimento sulcado em seu semblante ainda sorridente.

Eu, correndo e com fones de ouvidos, demorei um pouco para entender seus acenos, já que estava absorto em outros pensamentos. Achei que estava apenas me cumprimentando ou coisa parecida. Quando corro é como se voasse. Esqueço o mundo, os homens e suas idiotices, e simplesmente me deixo ir.

Fui até ele e, com um sorriso no rosto, as costas arqueadas de quem trabalhou pesado a vida toda, e percebi que o pobrezinho queria somente que eu o ajudasse a levantar a porta de seu estabelecimento, uma daquelas portas de correr aparentemente antiquíssima, oxidada e endurecida pelo tempo. Seu ranger ao ser erguida arrepiou-me a espinha e me fez refletir sobre o nada existencial que nada tem a ver com o de Sartre e Camus, mas apenas com aquele momento em que você ainda podendo correr (e muito!) vê e ajuda um senhor já curvado a erguer a porta de sua borracharia, a mesma onde trabalhou e trabalha criteriosamente há quase sessenta anos! O porquê daquilo? O que o motiva? A resposta: o medo da morte! Trabalhar o faz esquecer a morte e mantendo essa rotina prolongará sua vida e as lembranças dos seus melhores momentos naquele local. Gabriel Garcia Márquez certamente adoraria escrever sobre aquela forma de vida. Pena que já se foi e jamais passaria por essas bandas nem que se tivesse trinta vidas pela frente.

Se pensarmos que estamos sozinhos neste mundo louco e hostil, realmente sozinhos, já que ninguém habita nosso âmago, seria bem provável que enlouquecêssemos.

Ninguém é feliz ou triste a não ser você mesmo. Ninguém sente o cerne de sua dor ou o fervor de seus melhores dias, a não ser você mesmo. Por isso o indivíduo. Individualidade é normal; individualismo é doença. É normal ver um poeta sentado num banco de praça ou cadeira de boteco, sozinho, olhando as nuvens passarem e escrevendo num guardanapo de papel (hoje em dia no celular, já que até alguns poetas velhos aderiram às facilidades e praticidades tecnológicas). Também é normal pensar que ele esteja louco ou decepcionado com o mundo, ou talvez com depressão pura e simples. É normal ver pessoas conversando sozinhas dentro de suas residências. Uns conversam com plantas, outros com gatos, ratos, sapos e até tijolos. Já vi uma senhora conversando com um toco de árvore a qual ela dizia que seu finado e amado esposo estava ali, seu espírito, uma vez que fora ele quem plantara aquela jabuticabeira que hoje morta só resta o toco seco fincado na terra. Toda tarde ela prepara seu chazinho morno de hortelã, acompanhado por bolachas de água e sal, e fica lá sentada sozinha diante aquele toco, dialogando e bebericando seu chá, mastigando lentamente suas bolachinhas, olhar vítreo, como se trocasse uma ideia simples ou apenas relatos de como foi seu dia, coisas do cotidiano, de marido e mulher. Aquilo me impressionou um pouco a ponto de valorizar mais as pessoas, o ser humano, e ver que todos sofrem intimamente e poucos compreendem suas dores. Como diz o famigerado ditado popular: “pimenta nos olhos alheios é refresco”. As pessoas se tornaram frias com a era digital. Se acham! Se gabam! Se vangloriam mesmo sendo um nada vergonhoso, inútil e mesquinho, e que a morte e a decomposição e inerente a todos.

Hoje em dia, mesmo o mais vadio dos seres tem voz nas redes sociais. Umberto Eco já escreveu sobre isso e não vou ficar repetindo aqui, mas a propagação da imbecilidade gerou um boom de distorções, canalhices, safadezas, covardias e mentiras. Quem cresceu na época da datilografia e leu livros de papel tende a sofrer um pouco com essa mixórdia, esse emporcalhamento da arte e aviltamento da própria vida. A vida ficou banalizada, desvalorizada diante o empoderamento de voz e críticas oriundas das pessoas acima mencionadas. Os néscios não entendem nada. Vão nadando com a correnteza. O canalhas sim se aproveitam e se esbaldam neste universo paralelo e cheio de nuances e armadilhas.

Não que eu seja contra redes sociais, tecnologias ou mesmo o direito de o cidadão se expressar da maneira como bem entender, não! O interessante seria educar o povo para consumir os benefícios tecnológicos de forma salutar, qualitativa, de maneira a adquirir e transmitir conhecimentos, artes e bons hábitos, não essa putaria que se vê por aí!

Chega, cansei!

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 29/08/2019
Código do texto: T6732184
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