ACONTECEU COMIGO... E FOI ASSOMBROSAMENTE REAL!

Começarei lembrando que o caminho que levava àquele Hotel Fazenda era invisível para quem estivesse na auto-pista. Para encontrá-lo havia que pedir informação e assim, desviei-me por um povoado minúsculo, tão minúsculo que quando se pensava estar começando, já estava acabando: uma única rua desembocava no contorno da pracinha. Parando o carro, dirigi-me a um grupo de velhinhos que - se de algum assunto falavam- logo se calaram, intimidados pela proximidade invasora: Meu carro era uma nave, e eu um E.T, na calmaria de uma rua adormecida.

Enquanto me aproximava dos habitantes da terra, - daquela meia dúzia de anciãos indefesos, desamparados e emudecidos, - veio-me à lembrança um filme em que uma cidade ganha uma guerra e desaloja o invasor, com a hostilidade do silêncio...Como naquele filme, tão profundo era o sossego que se pássaros cantassem, seria um insulto à disciplina do dia, à muda ordem que comandava na sombra. Por isso, com a voz mais suave que encontrei dentro de mim, eu disse a eles “Bom dia” temendo violar algum voto de silêncio. O espanto seguinte veio com a súbita explosão de vida: renunciando simultaneamente à imobilidade da pedra, os seis habitantes da Pasárgada terrestre, responderam em coro “Bom dia”.

Então, porque o mundo acordou, indaguei do caminho para o hotel, esperando, pacientemente, qual deles responderia. Após um novo silêncio consensual, o homem que me pareceu mais velho levantou-se, equilibrou-se precariamente sobre um bordão, deu dois ou três passos hesitantes em direção à rua, com mão trêmula mostrou o rumo norte, contou 8 quilômetros em uma estrada de terra, generosamente chamou de ponte uma precária passagem sobre um riozinho, refez retas e curvas de memória, e quando eu pensava que ele regressaria do portão do hotel, ainda atravessou comigo a portaria e sugeriu que eu me hospedasse “no pavilhão da direita porque era o mais novo.” Suas palavras foram tão bem orientadas, sua descrição tão bem sucedida, que entre curvas e retas, minhas fronteiras tinham ultrapassado a geografia que ainda me faltava para alcançar o hotel, e eu já me encontrava lá, contemplando “o pavilhão da direita” onde me hospedaria.

Surpreendida pela inesperada vivacidade, arrazoei se estaria almejando alguma recompensa pelo desempenho da função de “guia turístico” ou se ele me dera tudo quanto sabia por nada... ou melhor explicando, se ele se dera de repente pela percepção de que, sozinho, talvez nunca mais pudesse desbravar um caminho, e então pegara carona no meu carro, no meu projeto, na minha viagem solitária.

Agradecendo, timidamente, eu sorri: acabara de receber não só uma direção mas uma súbita iluminação, feita da consciência de que indicar o caminho, talvez fosse a maneira redentora de fazer o homem sentir-se vivo entre os mortos. E de que, eu, quando ficasse velhinha, haveria de me sentar à praça ensinando O Caminho e o faria com tanto fervor, que até mesmo aqueles que não soubessem estar perdidos, de repente, se reconheceriam necessitados do meu zelo e premidos pela urgência do encontro.

O certo é que, se eu me confundira com a entrada oficial, agora ganhava, além da súbita iluminação, o charme de uma estradinha de terra batida, ondulante e sinuosa, e entre a minúscula igreja evangélica que fechava o povoado de uma única rua e a entrada do hotel fazenda, contei exatos 8 km. Embora não oficial, aquele, sem dúvida nenhuma, era o “caminho da roça.”

O que faz o povo da cidade procurar o caminho da roça? Naquele primeiro dia de hotel, eu me dediquei à possibilidade de tentar compreender porque entre tantos carros importados e entre tantos gostos requintados, as pessoas se faziam, repentinamente, tão devotadas à simplicidade, tão amantes dos baios e dos porcos, tão próximas de galos e galinhas, tão afeitas às amizades dos coelhos e das das vaquinhas, tão íntimas entre a bicharada.

Sem nenhuma possibilidade de compreender as razões e as ilusões irracionais, as incoerências existenciais de súbitos guardiães do reino animal, (entre eles uma mulher loura que, durante o dia alimentava coelhos e a noite se abrigava do frio com um casaco feito da pele de algumas dezenas do bichinho), procurei perceber a avaliação que a bicharada fazia de nós humanos. Enquanto mastigavam e mastigavam o verde pasto da grama que lhes pertencia, o olhar gélido nos permitia saber o que sente um E.T. em férias: um intruso em pasto alheio.

No outro dia, após o café da manhã desisti da tentação de fazer um novo laboratório entre homens e animais tão domésticos. Renunciei à crítica quando me lembrei porque estava ali: Eu havia vindo para ganhar uma batalha no reino espiritual.

Durante três dias, sai do quarto raríssimas vezes. A comida, - diga-se de passagem - deliciosa , vinha à porta, mas o meu alimento por excelência descia do céu. Fui buscando na Palavra todas as promessas que poderiam comprometer Deus e a sua fidelidade para comigo, e enquanto eu as reivindicava, Deus as assinava porque “quantas promessas há de Deus tem nele o sim, e por ele o amém, para a glória de Deus por nosso intermédio.”( 2 ª Cor. 1:20)

Na última noite, missão cumprida, desci para o jantar. Era a última atividade social, a noite que encerrava a temporada da semana que ia de 2ª a 5ª feira... No salão, pessoas deslumbrantes e deslumbradas se ocupavam umas com as outras, já esquecidas de cavalos, porcos e galinhas. Eu, além dos animais, não conhecia mais ninguém. E se durante três dias estivera no “monte”, de repente descer ao arraial dos filisteus, como participante de uma festa, foi para mim tão penoso quanto para Moisés ver de perto o entusiasmo pelo bezerro de ouro.

Então, porque eu não era do arraial e porque não conhecia ninguém, quando as apresentações artísticas tiveram início, em silêncio, peguei meu carro e tomei o rumo da estrada: Era noite de 5ª feira, certamente haveria um culto na igrejinha que delimitava o povoado e o campo.

Em poucos minutos, virando a curva, ela apareceu toda acesa, luminosa e iluminada no limite da campina. Eu tinha pressa, muita pressa, como se temesse perder o melhor. Pensava que ali, entre irmãos, seria recebida com naturalidade, sem nenhuma ostentação, magnitudes tombadas não pela proximidade de vacas, porcos e cavalos, mas pela consciência da majestade de Deus entre nós.

Mas óh vaidade das vaidades, quem era eu? Quem era aquela num reluzente carro negro? De onde surgira, como vinda do nada? Seria ela uma sílfide, uma bruxa, uma aparição do além? Quem saberia de que terras, de que portais viera a mulher vestida de negro, num carro negro, na noite negra, emergindo de escuras e coletivas fantasias construídas por uma mistura de histórias do além e pregações apocalípticas mal compreendidas?

Quando adentrei pela igrejinha, num relance me dei conta do insólito da situação : todos os presentes se voltaram ao mesmo tempo para mim, olhos abertos ao espanto do momento, à curiosidade profana... No interior do templo havia umas trinta pessoas, homens rudes, mulheres mal tratadas, crianças des- educadas, sem nenhuma reverência ... Na frente do templo, o dirigente, esse completamente despreparado, sem a mínima idéia de como resgatar a devoção que lhe fora roubada pela súbita e inesperada aparição.

E eu ,eu que nunca soube direito como ser objeto de muita atenção, vi-me perdida, desamparada, quase magoada. O irmãozinho dirigente pregava alguma coisa sobre o espanto de Moisés diante da sarça que ardia. Mas, se no púlpito, Moisés se espantava com a sarça que ardia, nos bancos, o povo se espantava com a minha presença e ninguém se incomodava de esconder a curiosidade, de disfarçar a perplexidade: todos os olhares, todos, absolutamente todos, estavam voltados para o último banco da igreja onde eu “estatelada” aguardava a alforria, o fim do culto, a liberdade.

Mas aí, algo ainda pior começou a acontecer: Compreendi, subitamente, que, de tanto nervosismo, o pregador não conseguiria contornar a situação. E eu, que quando fico nervosa, posso ter, como na infância, acesos incontroláveis de riso, comecei a morder ora o lábio superior, ora o inferior, e para evitar o inevitável, fechava os olhos como se estivesse em profunda devoção, a Bíblia sobre o peito, o rosto pegando fogo , uma “santa” vergonha me invadindo: a vergonha de estar profanando com a minha presença, a simplicidade do povo da terra.

Numa gramática sofrível, o irmão repetia e repetia, como um disco bolacha enroscado na agulha: “Moisés “sombrou “com a sarça....! Moisés “sombrou” com a sarça....! De quando em quando eu abria os olhos e lá estava, como num filme de Kafka eu olhando para o dirigente, o dirigente olhando para o povo, o povo olhando para mim.... Nada havia mudado no meu terror. Tudo era apocrifamente real.

Então, como eu previra que aconteceria, comecei a rir. Levei a mão à boca e comecei a rir. E continuaria rindo se não fosse a súbita explosão de cólera do dirigente que em alto e bom som falou assim: “ Moisés “sombrou” com a sarça e oceis “sombraram” com essa irmã. E enquanto a irmã não vier a frente falar com oceis, nóis não vai consegui continuar a pregação. Assim sendo, a irmã está com a oportunidade.”

Mais não disse, nem foi preciso. Seu tom de voz, indignado, falava tudo. Mas eu me senti aliviada. Por fim, o pesadelo terminaria em rápidas e poucas palavras: ali do banco mesmo, agradeci a “oportunidade”, falei meu nome, minha origem e meu destino. Mas antes mesmo que eu terminasse, uma voz feminina me interrompeu para perguntar: “a irmã “sombrou com nóis iguar nóis “sombro” com a irmã?”

A pergunta era tão simples e ao mesmo tempo tão complicada. Limitei-me a sorrir e a balançar a cabeça negativamente. Como explicar para a candura dessa alma que eu vivo em permanente assombro, como se me movesse nas trincheiras de uma guerra? Como explicar que meu universo estremece e se desfaz todos os dias, porque viver é muito perigoso? Como explicar que a perplexidade vem das minhas entranhas, de tal maneira que fora de mim nada me espanta e se eu não me assombrar comigo mesma, a cada dia, não me verei como sou?

Não minha irmã, eu não “sombrei” com vocês, eu “sombrei” comigo! Simplesmente comigo....!