TRANS-SUBSTANCIAÇÃO.

Estou no meio da caminhada matinal, quando vejo naquele banco, debaixo de uma árvore, na lateral daquela via circular de atletismo, uma velha senhora de saia pregueada, meia soquete no pé, sombrinha vermelha em uma das mãos, num arremedo de colegial que, enquanto sonha com outro destino, olha fixamente para o céu.

Olhar para o céu com certa fixidez é uma atitude extremamente contagiosa, e como se não bastasse o contágio da curiosidade pura e simples, a mulher balbuciava alguma coisa que lhe emprestava uma certa veneração ao olhar iluminado. De modo que, conferindo bem, ainda que as pernas balançassem a um ritmo quase infantil, o compasso da devoção estampada no rosto impressionava muito mais do que a sua figura patética, frágil e inusitada.

A cada vez, que passava por ali, não podia deixar de perscrutar, simultaneamente, a mulher e o céu, esperando, a qualquer momento, alcançar o que ela via, numa dimensão desconhecida para os comuns mortais.

Não sei se para me eximir da dura rotina de desportista, não sei se pelo calor do sol que me causticava a cada volta, o certo é que desejei abandonar, ao meio, a prática penosa de cada dia e assentar-me ao seu lado, num exercício de transferência que me permitisse usufruir da sombra da árvore e da isenção de julgamentos que a idade lhe conferia: àquela altura da vida, a mulher podia balançar as pernas, olhar para o céu e até erguer os braços ao infinito, sem olhar para a periferia, sem sentir-se ridícula, excêntrica ou folclórica. "Quando eu envelhecer vou usar púrpura" era o que a personagem e a situação me faziam lembrar, a cada volta.

Quando, quase uma hora depois, completei o circuito de cada dia, espantei-me com a sintonia dos nossos cronômetros. No momento em que arrematei os 8 km de caminhada, a anciã também concluiu o seu estranho devocional e, por uma dessas coincidências que só Deus explica, nos deparamos frente a frente, exatamente no vértice da pista que conduzia para fora do parque. Eu: vermelha, molhada, embebida em serotonina, cansada da caminhada... a anciã: branca, serena, tranqüila, rejuvenescida, em sua roupa de colegial. E o rosto...?! O rosto tinha um brilho que me fez lembrar, vagamente, Moisés descendo o monte, depois de estar dias a fio na presença de Deus.

De repente, a sombrinha vermelha, que lhe servia de apoio para a perna claudicante, transforma-se num cajado tosco e rude e lá vinha Moisés, de saia pregueada, meia soquete e andar hesitante; na mão, o cajado da autoridade delegada; no rosto, um brilho púrpura de mensageiro do céu.

Quando dois santos se encontram não importa muito quantas gerações os separam... não importa muito quantos usos e costumes estejam (des)usados em relação um ao outro. O reconhecimento é instantâneo: no momento em que nos olhamos, nos saudamos com a paz do Senhor! Então, quando, finalmente, indaguei que mistério havia no mais alto céu, respondeu-me que estivera pedindo ao Senhor uma porção sacudida de força que lhe permitisse completar a caminhada: faltavam-lhe exatos 4 km para alcançar a porta de sua casa.

Solenemente, abri a porta do meu carro para ela, mas quem entrou foi Moisés. E quando Moisés se assentou, perplexo, no banco da frente, compreendi que, de tal maneira, era recíproca a celebração, que eu me trans-substanciara num anjo capaz de fazê-la alcançar, com carro de fogo, em segundos, a Terra Prometida. Ela sorria, eu me sentia abraçada. Ela louvava, e a consciência da presença de Deus nos invadia reciprocamente. Com profunda reverência, sem nenhuma liturgia combinada, partilhamos a alegria íntima de saber que Deus lá no céu, nos via aqui na terra, o olhar brilhante, o coração apaixonado, a consciência do divino tão próxima, nos fazendo conhecer uma espécie de júbilo interior que nenhum outro ser poderia compartilhar. Quis entender e não pude: quem ali era objeto do amor de Deus?

Quando a porta do carro se fechou, e o portão da casa se abriu, depositei as asas no banco de trás, mas ainda conservei comigo a vida distante, um olhar comprido para o infinito, uma ternura, um sorriso, um jeito de olhar em volta e ver o invisível.

Ana Maria Bernardelli é autora dos livros

“Não há Jerusalém sem Gólgota”

e “O Vaso, o Tesouro e a Fera”.