Vida e Fernanda

Me lembro do casal Rui e Vani, comentando sobre a copa do mundo de 2002, antes dos jogos da seleção, de madrugada. Parece que foi ontem, mas a memória já não é a mesma. Sobraram impressões, sombras de sentimentos, de um tempo em que eu comemorei a vitória do Brasil como um cabrito desmamado em convulsão, escondido, com vergonha e, comigo, o meu melhor amigo, Pluto, que hoje brilha com as estrelas.

Adorava a série Os Normais. E continuo gostando. Mas faz tempo que não a vejo. Admito que a conscientização do que é ofensivo e do que não é cortou um pouco esse barato. Naqueles tempos, o humor era como tomar uma droga e ficar alucinado, rindo de [quase] todo mundo, uma época em que eu não existia como um sujeito com identidades nem via os outros assim. Não fazia ideia de quem escrevia a série.

O tempo passou, como só ele. Me levou o Pluto em 2006, minha infância, a inocência de torcer pra time de futebol e achar tudo perfeitamente espontâneo.

"Conheci" Fernanda Young [e seu marido], os responsáveis pelos meus risos e memórias doces de um Rio de Janeiro engraçado e inteligente. Ela, figura pálida, tatuada, com olhar altivo e mal encarado. Não sei porquê mas mulheres fortes e sensatas me atraem. Deve ser esta minha natureza mais matriarcal, de saber que quem carrega vida no ventre tende a ter mais discernimento de quem não tem essa responsabilidade.

O tempo continuou, Os Normais acabaram, teve o primeiro filme, o segundo... Lembranças tão boas e o meu sangue perdendo a pureza. Reencontrei Fernanda muito recentemente em entrevistas, sempre engraçada e bem articulada, com coisas importantes, fortes e verdadeiras pra dizer. Criei uma conta no Instagram, passei a segui-la. Me tirou risadas com posts super divertidos, em um deles fazendo uma troça saborosa sobre a sua asma. O humor auto-depreciativo mais fino que eu já li.

Me tirou lágrimas de um texto espetacular sobre sua depressão e os percalços que vivenciou com a família nos últimos anos. Fiquei emburrado com ela [coisa minha], parei de segui-la e, pouco tempo depois, voltei.

Fernanda foi vítima. Por ser sempre tão feminista, desbocada e original, ''xingada' de ''petista'', como se ser do PT fosse sinal imediato de falta de caráter. De ''parasita'', como se escrever não fosse um ofício trabalhoso. Suas tatuagens, irreverência e sinceridade inteligente sempre foram uma afronta pra gentinha. Sim, é claro que ela sempre foi de esquerda. Gente como ela nunca pode ser quadrada, sem graça, sem cor, como a multidão de almas apagadas que velam pelo navio pirata do fascismo, vezes descaradamente revelado e, em outras, disfarçado, mas sempre caricato, falso e infeliz. Fernanda sempre disse verdades profundas e cirúrgicas sobre aqueles que não têm autoconsciência, que não têm esse espelho que mostra tudo do ser. E parece que pagou por isso. Tão emocional, reativa, que não levava desaforo pra casa. A fumaça da Amazônia queimando os céus do país e os demônios dançando em cima da carcaça que é o Brasil. Parece que não conseguiu aguentar tanto horror.

Acordei no domingo, como todo domingo, dia em que mais uma semana morre, como a gente, e outra se prepara para renascer. Entrei no meu Instagram e não acreditei no que li. Até pouco tempo atrás, ela estava ativa, postando fotos, feliz, apesar dos pesares, vivendo, falando sobre projetos.

E o que aconteceu?

Fiquei sem reação. Eu, que falo tanto sobre morte e vida, quando essas coisas acontecem perto de mim, eu não tenho o que dizer. Foi um choque saber que ela se foi. Sinto muito, muito mesmo. Nessas horas, o meu ateísmo fica um pouco de lado, e os meus 2% de crença pensam se haverá alguma justiça divina para quem fez o bem neste mundo. Sua obra vive, Fernanda. Mesmo que nunca tenha me conhecido, eu te conheci e por dentro chorei, em silêncio, por ter ido tão cedo.