Crônicas Médicas - Os miseráveis

Costumam dizer que o bom médico é aquele que se coloca no lugar de seu paciente. Pode ser que eu tenha levado esse pensamento muito ao pé da letra.

Neste relato, não vou me apegar ao biológico nem contarei urgências médicas. Aqui, contarei minhas percepções ao me deparar com emergências que escapam de minhas mãos, que vão muito além da breve significância de meu ser.

O caminho era exaustivo feito de carro. Imaginava, então, como se sentiam os que fazem aqueles quilômetros a pé ou de bicicleta, no máximo em uma carroça, sob o sol extenuante, sob a chuva torrencial ou frente ao frio congelante. Saímos de uma rua de chão batido, passando pelo asfalto de uma rodovia, para, enfim, chegarmos àquela comunidade ainda desassistida. Lá, em vez do tapete vermelho, que muitos médicos e alunos acreditam merecer, chão forrado por sacolas plásticas, garrafas PET, fraldas usadas e outros tipos de lixo nos recebia de braços abertos, implorando, muito mais que por saúde e saneamento, por dignidade.

Ao fazermos a curva e avistarmos o local de nossa ação, o véu que cobria meus olhos, mostrando-me a realidade à qual estava acostumado, desfez-se em pó. O contraste entre dois carros brancos, entrando em uma rua margeada por lixo e miséria, e casebres de madeira e sucata era de tirar o fôlego e acelerar o coração. Neste cenário, como quem sai de um filme de comédia para entrar em uma trama de suspense, os olhares curiosos daqueles miseráveis nos acompanhavam conforme os carros se aproximavam e eu, atrás do volante, desconstruía-me a cada metro.

Paramos um pouco adiante, logo após o término das moradias, onde o espaço se abria em pasto, em partes coberto por grama. Enquanto descíamos dos carros, já com os olhares indiscretos deixados para trás, um jovem se aproximava, montado em um cavalo branco manchado pela terra marrom. Ereto e imponente sobre o animal, passou por nós como um raio e se perdeu no caminho à nossa frente, sem dizer uma única palavra. “Prestem todos atenção”, disse a professora, fazendo um sinal para que nos reuníssemos ao seu redor. “Já conversamos sobre isso, mas é sempre bom retomar. Vamos de casa em casa, explicando quem somos e o que estamos fazendo. Estas são as informações que precisamos recolher”.

Pegamos o questionário, passamos o olho por cada pergunta e seguimos, um tanto hesitantes, em direção à primeira casa.

“Não tem ninguém aí”, gritou uma voz feminina atrás de nós enquanto batíamos palmas em frente à única casa de alvenaria daquele Lixão. “Se o Fuquinha não tá aí, a dona também não tá”.

“Poxa, muito obrigada, C.”, agradeceu a professora. “Viemos aqui hoje com os alunos da medicina e com o pessoal do postinho. Vamos recolher informações para construirmos um mapa sobre o local. Você pode nos ajudar, como fez da última vez”.

“Ah, hoje não vai dar, não”, respondeu. “Tô correndo atrás da égua. Deixei ela pastando por uns vinte minutos e ela sumiu. Já rodei tudo e não achei nada”.

Assim, demos continuidade e fomos para as próximas casas. Algumas eram simples barracos e outras, um pouco mais estruturadas. Cada uma continha a própria história, suas peculiaridades. Algumas eram habitadas por casal de idosos, outras pelos pais e inúmeros filhos. Alguns eram usuários de drogas, outros eram líderes comunitários. Alguns sediavam a igreja local, outros sequer tinham religião. Alguns tinham boa saúde, outros estavam debilitados. Alguns tinham emprego, outros sobreviviam daquilo que aparecesse. Alguns tinham energia, outros tinham o mato como banheiro.

Entre essas histórias de alguns e outros, muito aprendi como pessoa. Em cada casa que acreditava haver um miserável, existia uma alma feliz. Em cada lar que havia pouca estrutura, existia muito amor. Em cada barraco marcado pela pobreza, o que se sobressaía era o cuidado. Crianças vacinadas e na escola, adultos trabalhadores e atenciosos.

Descobri, naquele dia, que a miséria residia em nós, alunos e profissionais que acreditavam ser humanos o suficiente para cuidar do próximo. Naquela tarde, em vez de levar a cura, eu a recebi. Enquanto colocava o Lixão no mapa, purificava meu coração de rótulos e pré-conceitos. A dignidade que aquele povo procurava não era somente condições estruturais; era, principalmente, a queda dos muros invisíveis que distanciavam a riqueza daqueles olhares da ignorância dos estudiosos.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 06/09/2019
Reeditado em 03/07/2020
Código do texto: T6738920
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