Ágata

Eram 21 horas quando a Kombi se dirigiu à comunidade Fazendinha, no Complexo do Alemão. Dentro dela, Ágata Vitória Salles Félix, de 8 anos, ainda tinha pique para, entusiasmadamente, contar à mãe sobre a aula de balé que tivera na tarde daquele dia e sobre o que aprendera no curso de inglês que participara de manhã.

Era uma noite comum, familiar como todas as outras, sua chegada aliviara o calor escaldante que se perpetuara pelo dia inteiro, e legitimara a sofrida conquista que aquelas pessoas, dentro daquela Kombi, tinham que obter quase que diariamente, na injusta realidade da qual faziam parte.

Ágata era a filha de um trabalhador e de uma trabalhadora. Divertia-se, como todas as crianças, com brincadeiras variadas, tinha sonhos coloridos, adorava um vestidinho novo e bonecas simpáticas e derretia-se meigamente na acolhida insubstituível e agradável do abraço do papai e da mamãe. Ágata tinha sonhos para quando crescesse. Seria uma advogada? Seria uma bailarina? Seria uma professora? Ou seria uma estatística?

A sexta-feira de 20 de novembro não permitiu que os sonhos da pequena Ágata se concretizassem da forma merecida, e um tiro de fuzil, pelas costas, interrompeu de forma violenta qualquer possibilidade de futuro que aquela garota pudesse vir a ter. Restou-lhe, à margem dos sentimentos profundos dos que a amavam, restou-lhe ser estatística.

Ágata, em seus sonhos pueris, talvez tivesse os mesmos desejos e anseios que outras meninas de sua idade, independentes de sua classe social. Talvez, e é bem provável, a sua resposta para a pergunta: “O que você quer ser quando crescer?” não se diferenciasse tanto das respostas de outras meninas, mesmo as de famílias abastadas, seguras pelo benefício que uma sociedade desigual propicia aos que estão no topo da pirâmide sempre em detrimento dos que estão abaixo. Talvez, nesse ponto, Ágata fosse exatamente igual à filha de um diretor de uma multinacional.

Mas, e os seus medos? Será que eles a aproximariam da mesma maneira das meninas do topo da pirâmide? Provavelmente não. Em realidades em que a desigualdade é latente e a violência é um ingrediente comum a essa realidade os medos são os diferenciadores, contrastam com os sonhos, com a alegria, e reivindicam para si a conclusão peremptória desta triste sina.

Mas se há vítimas há culpados. E quem são eles? Será a polícia, de quem supostamente saiu o tiro? Ou o estado que em sua notória e quase clássica incompetência não é capaz de nos prover um mínimo que seja de segurança e mesmo de dignidade?

Seria o estado, esse gigolô, o responsável por nos incutir a incerteza de um retorno em segurança para nossos lares e pessoas que amamos? Não. O estado não olha para seus filhos, pois o estado não tem filhos, o estado tem cidadãos, pagadores de impostos, vítimas, culpados e estatísticas. Quem tinha filhos eram os pais de Ágata e tantos outros que, na crueldade desta ruptura antinatural que é pais enterrarem seus filhos, reservam para si um sentimento amargurado que mistura a espera por justiça com a certeza da impunidade.

Faz noite no Alemão...

Eram 21:30 quando a Kombi se dirigiu à comunidade da Fazendinha, no complexo do Alemão.

Na Kombi um estrondo, um grito, um último suspiro, uma criança morta, uma país morto, mais uma, mais um...

E o país dos “cidadãos de bem” parece se confundir sob o próprio jugo moralizante, e padece alquebrado, apodrecido, arruinado, no corpo agora sem vida da pequena Ágata.

Fez noite no Alemão... e de noite ficou.

Bruno Sousa
Enviado por Bruno Sousa em 27/09/2019
Reeditado em 05/11/2019
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