OS CONTORNOS DA SANTA HIPOCRISIA

De que contornos é feita a “santa” hipocrisia? Se “hipocrisia” segundo o dicionário é a afetação de uma virtude, de um sentimento louvável que não se tem, de que maneira essa falsa devoção tem invadido os domínios da igreja, tem se sentado nos púlpitos, tem ocupado os bancos de nossas denominações, tem inspirado relacionamentos afetando a propriedade do sal e o brilho da luz em nossas congregações?

Se de sal e de luz deveria ser o consórcio evangélico, é necessário certo grau de ingenuidade para crer que a hipocrisia possa ser barrada na porta das igrejas com a simplicidade pragmática de uma disposição estatutária. É necessário certa coragem para admitir que “coando mosquitos e engolindo camelos” impedimos a aparência do “mais profano” e não conseguimos excluir a impostura e o fingimento escondido. É preciso certo distanciamento para reconhecer que entre muitas tribulações fraternais e entre muitos relacionamentos “tribulacionais” nos importa ganhar o reino dos céus.

Mas de que contornos se faz mesmo essa “santa “hipocrisia? De que maneira ela se disfarça e se impõe nos abraços e nas saudações distribuídas diplomaticamente entre a irmandade, no curto espaço de tempo compartilhado pela via do discurso, da fraternidade e da comunhão? Da mesma maneira como o homem se relaciona com o mundo através dos cinco sentidos, vendo, falando, tocando, cheirando, saboreando, a hipocrisia encontra, entre nós, o mesmo caminho sensitivo para se manifestar.

Muitas vezes, a hipocrisia se justifica e se reveste de interesse fraternal quando se fala, sem nenhum pudor, da miséria mais escondida através de pedidos públicos de oração em favor daquele que caiu da graça. Muitas vezes, a hipocrisia se manifesta na metamorfose do zelo, quando se examina o pecado do outro com o rigor de nossas convenções estatutárias e se toca na vida do irmão sem a interpretação subjetiva dos motivos de sua queda. Muitas vezes, a hipocrisia se enche de exortação quando discursa dos púlpitos e aponta o dedo para pecadores e pecadoras enquanto justifica o erro oculto do pregador. E, outras vezes mais, ela é o cardápio promocional da semana, servido com uma pitada de astúcia e outra de compaixão, variando a quantidade desses ingredientes segundo a simpatia ou a antipatia do interlocutor mais próximo. Ela pode ser ainda, o prato principal de um banquete, cujo cheiro e sabor foi produzido no caldeirão do inferno para ser servido com o molho santo da piedade fraterna. E, de tal maneira, encontra caminho nas fileiras da consagração religiosa, que só julga o procedimento do irmão pela via de mão única do juízo implacável, enquanto busca para si a misericórdia infinita de Deus.

Ah, de que contornos é feita a “santa” hipocrisia....! Se tivéssemos humildade e coerência para admitir que com as armas da dedicação e do altruísmo religioso muita maldade já se produziu no seio da igreja, seria bem mais fácil identificar os contornos ondulantes da “santa” hipocrisia. Reconhecer o momento em que ela serpenteia nos bancos e púlpitos denominacionais depende apenas de uma análise de nossa atuação mediante uma única política de sistemática operacional: a quem estamos servindo no exato momento em que levantamos questões de ordem e enterramos princípios espirituais? Com quem estamos nos aliando quando julgamos o procedimento alheio pela via do legalismo religioso que mata, esfola, arranca a pele do cordeiro e o entrega como alimento para o lobo?

Contabilizar o mais sutil só é possível aos olhos daquele que conhece o coração do homem. Acresce que todo homem é um manipulador de resultados que favoreçam a integridade de seu coração. Some-se a isso a neutralidade implacável com que ele julga o mais miserável e teremos tocado os contornos da “santa” hipocrisia.

E quando obtivermos a consistência de sua fórmula diabólica no meio evangélico, lembremo-nos de que Jesus foi muito mais condescendente com o pecado declarado de prostitutas e publicanos do que com o pecado da hipocrisia oculta no coração dos religiosos. A esses Jesus chamou de “sepulcros caiados”.