*Que samaritano sou eu?

Que samaritano sou eu?

Primeiro ato:

Na época de Jesus, o judaísmo só não estava mais bagunçado que o cristianismo de hoje, porque aí já seria uma esculhambação generalizada. Para complicar ainda mais, e que Deus me perdoe, Jesus não fez nada para acalmar os ânimos. Pelo contrário, ainda botava mais azeite na fogueira.

Havia sim, uma inimizade histórica entre os hebreus que começara no distante século X a.C, com a divisão do povo em Reino de Israel, ao Norte, com capital em Samaria e Reino de Judá; e ao Sul, com capital em Jerusalém.

Os samaritanos eram considerados elementos ruins, desprezíveis, de terceira classe e, a bem da verdade, não gratuitamente. É claro que, em matéria de sincretismo, de hipocrisia, politeísmo e falta de identidade, todos deveriam fazer a “mea culpa”. Ainda assim, Jesus não perdia oportunidade para elogiar os samaritanos, mesmo sendo Ele da linhagem de Judá, pertencente, na origem, ao Reino do Sul.

Segundo ato:

Esta semana, eu li dois artigos pertinentes, um do conterrâneo João Passos, lá de Cocal, no Piauí, que escreveu “Pobre Diabo”, e outro, do carioca Fernando Antônio Pereira, intitulado “Surpresa no Quotidiano”. Ambos são escritores do site Recanto das Letras, os quais eu recomendo, pois são uma ótima leitura e merecem uma demorada reflexão.

Terceiro ato:

Também esta semana, minha mulher e minha filha Camila foram a um dos shoppings da cidade. Ao passarem pela praça de alimentação, Camila notou que numa mesa próxima, uma jovem senhora chorava copiosamente. Perguntei à minha mulher se elas procuraram saber se a moça precisava de ajuda. A resposta foi negativa, porque ambas precisavam ir ao toilette, onde demoraram cerca de dez minutos. No retorno, a moça já tinha ido embora...

Minha mulher é professora, acostumada a lidar com problemas de alunos e de seus familiares. Eu e ela trabalhamos, por muito tempo, em curso de preparação de noivos em nossa Paróquia e adquirimos muita experiência com casais. Minha filha, por sua vez, é psicóloga.

Quarto ato:

O grande escritor Júlio César de Mello e Souza, o Malba Tahan, disse que Deus amava mais os advérbios que os verbos. E explicava isso com sua didática surpreendente:

– Fazer (verbo) é fácil. “Como” (advérbio) é mais importante. Como fazer, eis “the question!” Fazer não resolve deforma enfática o problema, é necessário o advérbio: Fazer bem feito; fazer com amor.

Na minha modesta concepção, a maior desgraça da “solidariedade” é ser substantivo e, como se isso fosse pouco, ainda por cima é abstrato. Deus deve gostar mais dos verbos que dos substantivos. Afinal, ao falar de Si mesmo a Moisés, disse: “Eu Sou”.

Causou-me uma profunda e desagradável estranheza saber que uma professora e uma psicóloga cristãs não tiveram a sensibilidade de socorrer uma vítima em potencial. E justamente no mês da Bíblia! Não estou a eximir-me desse quadro. Se eu estivesse com as duas, poderia ter acontecido tudo da mesma forma ou pior.

O fato é que precisamos nos enquadrar no Reino do Norte ou no Reino do Sul. Se ficarmos no Reino do Norte, ainda teremos que saber que tipo de samaritanos seremos nós. Seremos samaritanos politicamente corretos ou corretos samaritanos?

Quando o Papa Paulo VI escreveu a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (Anunciar o Evangelho), fez um questionamento de radical importância e agressivamente pedagógico:

– “Acreditais verdadeiramente naquilo que anunciais? Viveis aquilo em que acreditais? Pregais realmente aquilo que viveis?”

Basta uma resposta dúbia, para que tenhamos que refazer todo o nosso apostolado. Nossas urgências, não poucas vezes ínfimas, colocam de fora nossas tripas e o que de podre há dentro delas. A nossa solidariedade de faz de conta, tantas vezes exaltada, não se faz aprovar nem mesmo num teste de laboratório minimamente raso. A nossa toilette serve, unicamente, para o retoque de nossas máscaras, porque uma máscara bonita é a chave para abrir muitas portas, especialmente num shopping de carnavalescos.

Hoje, o Cristo precisaria de um chicote em cada mão e muito mais energia e paciência. Lamentavelmente, existe mais solidariedade no reino animal dito irracional, que no nosso.

Lembro-me de um caso passado no Globo Rural, onde um peixinho de aquário tinha um problema de saúde na vesícula natatória (aquele balãozinho de ar interno). O peixinho não conseguia encher o balão de ar e, por isso, não subia até a superfície do aquário. Estava, portanto, condenado a morrer por inanição, visto que a comida em forma de escamas ficava sobre a água.

Qual não foi a surpresa ao descobrirem que um peixe maior, que nem era da mesma linhagem, metia-se por baixo dele e o erguia, lavando-o até os alimentos. Só depois que ele enchia a pança, é que o peixe maior o levava de volta ao fundo do aquário e subia para comer.

Outro fato que não merece ser esquecido é o de um pato de uma fazenda que adotou um bezerro que nascera cego e fora abandonado pela mãe. Todos os dias, o pato saía à frente, sendo seguido pelo bezerro que se deixava guiar pelo grasnado do pato. Este o levava até a lagoa, para beber água, e depois o levava de volta ao pasto.

Tem muita gente morrendo ou entrando em depressão por falta de uma palavra de conforto e muita gente intoxicada por causa de palavras duras e injustas, proferidas por pessoas indiferentes às outras, sem nenhuma empatia.

Alguns sinais são visíveis, mas tem gente que não vê nem a ponta das próprias ventas, por estarem presas em suas campânulas. Ninguém paga impostos por ser agradável, diligente, amigo.

Pelo visto, bons samaritanos estão cada vez mais escassos.