Das lembranças mais doces que me acompanham, há um registro de uma menina que ao tirar água de poço fundo com balde, sem corda, me ensinou que o direito de parar no tempo não pertence a quem teve seu corpo violado. Ou você se livra da maldade humana enfiada goela abaixo, vomitando ou engole o choro e faz do corpo a sua zona de martírio. E ela escolheu a primeira.
Angel nasceu de uma família onde o amor era remanescente das gerações que a antecederam de forma sublime: era o beijo ao acordar, o abraço ao se despedir e a canção tocada ao redor do fogão à lenha, antes de dormir. 
Tudo era intocável, a inocência era a porta de entrada do coração daquela menina, que enxergava algodão doce em limão azedo e marshmallon em manga verde. Brincava de casinha feito a mãe, sendo costureira, cuidava da casa e dos filhos, que eram bonecas de pano criadas por elas, com os retalhos que sobravam das costuras.
O seu tempo era tão precioso que ganhará um relógio digital para marcá-lo, e entre uma atividade e outra, esperava com emoção a chegada do pai. Era o seu amor primeiro, um anjo que a cobria de cuidados, atenção e amor.
Certa feita, por causa da baixa safra na região, o pai decidiu mudar pra cidade e construir uma casa para buscá-los. E assim, as noites ficaram tristes, mas a esperança era renovada em cada retorno do pai para contar uma novidade sobre a vida na cidade.
Angel era muito amável e toda vez que a mãe fazia alguma quitanda saia distribuindo para os vizinhos. Mas de um tempo pra cá, ela não andava bem. Triste, envergonhada, chorosa, mas convenhamos, a ausência do pai justificava.
Num domingo à tarde, quando seu irmão em brincadeira tentou lhe abraçar pelas costas, a menina chorou copiosamente e entrando para o paiol, se viu ali feito bicho doido. O irmão, também especialmente quesito cuidado, foi falar com ela. Quando então os dois saíram de lá o irmão correu até o pai e chorando contou-lhe o ocorrido. O pai, ficou enraivecido e veio abraçar Angel que, sentindo-se acolhida, chorou, chorou, chorou.
Angel aos 7 anos, sofria calada, por medo abuso sexual por um vizinho, casado com a melhor amiga devida mãe. Ao descrever a frieza com que o vizinho a despia e obrigava a realizar atos sem a sua vontade, ela tremia mordendo os lábios a ponto de sangrá-lo.
O pai tomou as providências cabíveis e o vizinho acabou preso. Angel cresceu na cidade, já que isso antecipou a saída da família daquelas terras. Estudou e tornou-se uma médica ginecologista responsável pela avaliação, como perita, de denúncias de estupro e abuso sexual.
Tive a oportunidade de conhecer Angel, num deslize da vida, quando de um acompanhamento de um processo e para minha surpresa, no mesmo dia conheci o pai que, entre uma conversa e outra, criou coragem e perguntou pra Angel sobre suas lembranças e ela respondeu com uma força capaz de encher Sansão de inveja: - Pai, jamais vou esquecer aquele olhar, aquelas mãos. Mas o que me impulsionou a continuar, mesmo sem força, em alguns momentos, foi a acolhida primeiro do Miguel e depois de vocês pai. Uma lágrima rolou nos olhos dele molhando os óculos e eu desabei.
Essa história verídica (nomes fictícios) é um alerta vermelho pra mostrar o quanto a acolhidae a confiança podem mudar um destino.E mais ainda, pra deixar de ser tabu um assunto tão em voga.
Imensurável quantas Angel’s já encontrei no caminho, tão devastados quanto essa, mas com a diferença de ter visto a justiça ser praticada e ter a família como parceira. Mas a maioria, sem escolha, caíram na alternativa B... 
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 16/10/2019
Reeditado em 16/10/2019
Código do texto: T6771520
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