Tempo indigesto

Domingo, almoço na casa da vovó. Dia específico para reunir os “achados e perdidos” da família: parentes a todo modo, dos mais presentes aos mais ausentes.

O gosto marcante da lasanha da tia Jane e o cheirinho convidativo da feijoada da tia Fátima eram esperados por todos. Meus tios biológicos e agregados conversavam no jardim sobre o campeonato brasileiro de futebol. As relações seguiam seu curso natural.

Observava a chegada dos "trocentos" parentes que tinha – e às vezes até esquecia que os tinha (risos).

Abraços, olhares, perguntas aos montes. O top 3 “faculdade/emprego/relacionamento” era o assunto mais abordado a cada parada.

Crianças corriam estabanadas pela sala de estar, e a mamãe, coitada, se encontrava em estado de loucura com tamanha agitação.

O dia mal começava e já me sentia cansada. Queria minha Netflix, mas precisava fazer a política da boa vizinhança. “Sorria e acene!” – Os pinguins de Madagascar são maravilhosos!

“Chegou a Laura com o marido e as crianças!” – gritou o vovô com toda vivacidade do seu mais de meio século de vida.

Pensei – meu Deus, mais crianças? – e nem me dei conta da Laura, minha prima caçula de primeiro grau.

“Gente, é a Laurinha? Ela casou? Procriou? Como o tempo passou tão rápido?”

Por um dado momento parei para analisar o batalhão a minha volta. “Ladies and gentlemen”, tempo é implacável mesmo! A vovó, que era tão vaidosa, se deixou levar pelos cabelos brancos que hoje tomam todo o formato do seu couro cabeludo (não nego que acho um charme!). O tio Paulo trocou a barriga de tanquinho da juventude pelo barril de cerveja, também conhecido como abdômen. Minhas tias envelheceram, todas. A umas o tempo fez bem, a outras, o tempo agiu com mais veemência. Brotavam crianças na casa dos meus avós, e confesso desconhecer a maioria delas. Crianças gordinhas, magrinhas, birrentas, barulhentas. Crianças. Corriam, se divertiam, brigavam entre si com uma granada numa mão e uma bandeira de paz na outra.

Eu, que estava tão cansada daquele ritual de família, alternei os olhos do celular para a brincadeira e deixei escapar um discreto sorrisinho com a diversão escandalosa daquela geração que precedia a minha. O mais interessante era que eles não estavam conectados a nenhum aparelho smartphone ou afim, brincavam à moda antiga, correndo, caindo e levantando para correr, cair e levantar novamente.

É... o tempo voa.

De repente me vi fazendo uma análise antropológica do tempo. Inexplicavelmente, a cena mexeu comigo. Tentei lembrar o último dia em que brinquei com os meus amigos de maneira despretensiosa. Lembrei-me da escola, dos professores, das primeiras paqueras. Me recordei a mágica que era dormir no sofá e acordar na cama, com o pijaminha rosa e um lençol cheirosinho me cobrindo dos pés à cabeça. Lembrei uma época em que a política não fazia sentido algum. Em que a responsabilidade maior era a de fazer a tarefinha de casa e tirar notas boas na escola.

A minha epifania se estendeu a ponto de perceber que o tempo também estava passando para mim. Esquivei-me para a direita e pude ver através do espelho da sala as primeiras marcas da idade, as olheiras e sobretudo, a impaciência, marca número um da comunidade adulta.

Que loucura tudo isso!

Às vezes crescer é chato. Criança gosta de ser criança. Adolescente gosta dos desafios e o adulto gosta de quê? Se reunir com a família aos domingos para constatar que todos estão caminhando juntos e uníssonos para a velhice?

Acho que os poemas de Bukowski afetaram minha docilidade. Viver é isso, um emaranhado de sentimentos e sensações estranhas. A infância é a porta de entrada para os dias mais austeros e difíceis, e a vida adulta é um mar denso e circunspecto.

As crianças continuam brincando, os adultos se divertindo como podem e o tempo correndo solto na ampulheta do destino.

“O almoço tá na mesa!” – convocou a vovó.

É hora de degustar as iguarias da família e fazer digestão dessa criticidade toda.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 21/10/2019
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