O RETRATO NA PAREDE.

Eu estava acomodando o retrato na parede, quando ela entrou.

Filhos adolescentes chegam sempre como um tufão, são rápidos, agitados e lacônicos. Parecem estar sempre atrasados para algum compromisso inadiável. Filha adolescente é como essa que está diante dos meus olhos, dizendo o que quer, o que pensa, embaçando a monotonia, deixando no ambiente uma certa agitação, até mesmo depois que já se foi. Uma lufada de vento forte em ambiente fechado.

Diante de tanta urgência, o confronto é inevitável: percebemos como a vida vai nos tornando vagarosos, sem a pressa de quem quer logo chegar.

Estava dimensionando o retrato na parede, mais exatamente um retrato familiar, daqueles pesados, com moldura antiga, contornada de madrepérola. Lá dentro, um casal de meia idade me observava, com extrema seriedade, enquanto eu retribuía com carinho, limpando, enquadrando, penetrando na estaticidade tranqüila, só para adivinhar o que gostariam de dizer à mim, terceira geração da família.

Mesmo sem falar, eles me contavam. Toda manhã, enquanto limpava, também aprendia. Meu avô foi um homem singular pela fortaleza de caráter e de espírito. Teve objetivos bem definidos e lutou por eles com tenacidade e coragem. Conheceu, e casou-se, com minha avó, na Espanha de Franco. Imigrando para a Argentina, trabalhou em minas de carvão, até que a jovem mulher, que ficara na Espanha, contraísse a gripe espanhola. Vencida a ameaça de morte, decidiram, de comum acordo, que não mais se separariam em vida .

Vieram para o Brasil. Anos de trabalho, de luta, de sub-escravidão nas lavouras da terra . Depois do campo, a cidade. A vida ainda mais dura, impunha uma rotina pesada de trabalho: guarda-noturno de noite, lavrador de dia. Morava numa chácara e assim que chegava do trabalho da noite, às 5 horas da manhã, plantava e colhia até o meio dia. A tarde, dormia. As poucas horas de sono não o abatiam, dizia que o corpo é comandado pela disciplina da mente.

Um dia adoeceu, e só parou de trabalhar na semana em que morreu. Foi numa segunda feira. A morte viria tranqüila, pela manhã, e o encontraria com um sorriso nos lábios, já nos momentos finais. Ou seriam momentos iniciais?

Uma semana depois, a companheira fez a sua despedida. Foram 7 dias em estado de circunspecção, sem reclamar, sem lamentar, sem desespero. Num processo volitivo, deixou-se morrer. A cada dia, um pouco, até que não faltasse mais nada. Como uma vela que vai derretendo a última chamazinha bruxuleante. Contrariando a máxima cerimonial “até que a morte os separe”, criaram sua própria fórmula conjugal: “ nem a morte nos separe.”

Esse relato de vida, essa história de trabalho, de determinação, de coragem e de amor, sempre me impressionou, ainda que não os tivesse conhecido.

O retrato sempre teve sobre mim essa força quase psicanalítica. Se sentisse preguiça, o retrato na parede dava-me energia. Se tivesse cansaço, alguma coisa da genética transcendia o retrato dando-me alento. Se ficasse deprimida, bastava me lembrar e apenas a lembrança servia para me levantar. O meu coração liberou o toque que a minha mão não alcançou. A minha alma absorveu o que o meu cérebro não experienciou. De alguma forma, eu vi, compreendi, e aprendi com o casal do retrato.

Esse era o momento mágico que eu revivia, naquela manhã, quando entrou na sala a voraz representante da quarta geração do casal. Num cantinho da parede, timidamente, o retrato. Na sala, ocupando todos os espaços, foi logo dizendo: “Poxa, que quadro mais antigo... isso aí não está meio fora de moda, não?” E antes que eu respondesse já tinha ido. A pressa, sempre a pressa.

Olho para o casal e tento explicar, com protecionismo de mãe, que juventude é assim mesmo, não preserva valores, não tem historicidade, ainda não sabe nada de ternuras ancestrais. Só mais tarde, muito mais tarde, estará preparada para compreender que um galho existe porque faz parte de uma árvore, que foi alimentado por uma raiz, de cuja seiva vingou a vida. Só mais tarde, meu galhozinho verdejante, que hoje se agita arrojado, ganhará mansidão para reconhecer que a senhora de meia idade, que posa com dignidade e elegância no alto da parede, tem os olhos amendoados e a maçã do rosto saliente, a tez morena e uma cascata de cabelos negros, exatamente como ela mesma. E que o senhor de largos bigodes, de olhar sereno e firme, tem uma história de vida recheada de exemplos nobres, que permanecerão para sempre.

Enquanto houver alguém com sensibilidade, para manter pendurado na parede um velho retrato, enquanto houver o cultivo da lembrança, haverá também um modelo. Conversar com o retrato por alguns segundos, não romperá a barreira da morte, mas vencerá o obstáculo do tempo, da indiferença e do esquecimento. Por ora, é preciso compreender o meu galhinho verdejante, dando a ele a boa seiva do crédito, o vaticínio de que a fruta não cairá longe do pé. Afinal, coube-me o papel de mediadora entre a garota e o retrato, entre o antigo e o novo. Estou a meio caminho, entre lá e cá. Sou um ser com duas referências e entre duas dimensões.

Enquanto ela se afasta, explodindo em vida, sorrio saudosa para o meu passado e enquadro, com resignação, o meu futuro, em forma de retrato na parede.

18/12/1987