O CÃO CHUPANDO MANGA

Antônio Coletto – 22-08-2019

Na sala de aula o professor Edinho, um homossexual desajeitado, egresso do último concurso, recém empossado, demonstrava sua admiração com gestos extravagantes e expressões de riso e de horror às perguntas que os alunos formulavam e, à medida que eram feitas, tentava responder a cada menino ou menina que indagava. Assombrado ficou quando uma de suas “xiquititas” – chamava todas as meninas de “xiquititas” – formulou-lhe uma questão sobre a vida e a morte. À admiração competia razão. Pensativo, refletiu: tão menina, tão jovem, com tanto para viver e aprender, já a preocupar-se com a vida e com a morte!?. Tentava responder com palavras que lhe dessem a certeza de que estava sendo entendido. Deixou, assim, no meio da resposta, escapar a palavra segredo. Caíram os alunos, metaforicamente, sobre ele e, sobre “o segredo” passaram a questionar. O que são segredos?, pergunto. Não preciso pedir a atenção de todos. Prestem, afirmou. Segredo é aquilo que a ninguém deve ser dito; que é oculto, secreto; uma confidência: são coisas, fatos, acontecimentos, informações obtidas que não podem ser reveladas, e sim guardadas para si próprios, como fazem os padres por ocasião das confissões ouvidas dos fiéis, respondia o mestre.

Os segredos são daqueles fatos, acontecimentos da vida das pessoas que pertencem tão somente a elas, ou a quem elas os confiarem, em sendo segredo, pois não deve ser confiado a ninguém, exceto a uma pessoa de sua inteira confiança. Não refletem em prazer e nem em satisfação, sejam os segredos de outras pessoas conhecidos. Mas, todo homem faz isso?, guarda segredos?, perguntou a menina com expressão tímida, sentada no canto da sala afirmando e, a murmurar: no reino das crianças não é assim. É provável que nesse reino encantado que você imagina existir não o seja. Mas existe realmente esse reino? E se existe, ele é igual para todos vocês?, indagou o professor Edinho. Olhem para mim, advertiu a fazer transparecer seriedade, o mestre, recebendo a atenção da petizada: pensem comigo, meditem; observemos que, todo homem não, retrucou o professor, mas quase todos os seres humanos possuem coisas, acontecimentos, fatos de suas vidas que não gostariam de ver revelados. Entre estes as decepções, os erros, os fracassos, as vergonhas. Falo ser humano, de seres humanos a tudo sujeitos, por adequação de linguagem, pois todos nós somos iguais e desfrutamos das mesmas probabilidades: as Leis de Deus e dos Homens nos igualam. A transparência plena, “quinzinhos” e “xiquititas”, é uma utopia, um sonho. A sociedade imaginada por Tomaz More, em seu livro do mesmo nome, legou à humanidade a maior de todas as utopias, a sociedade impossível, a descrição de uma sociedade com vida, disciplina e beneficência impossíveis. O aluno ao lado da menina, olhando nos grandes olhos verdes delas, de pronto perguntou, ao relatar conversa ouvida entre o pai e amigos, enquanto jogavam baralho em sua casa: professor, qual é o segredo da humanidade?

O professor Edinho arregalou seus grandes olhos azuis, engasgou, parou por alguns instantes, ficou pensativo, tomou um gole de água de sua garrafinha sobre a mesa; a classe na expectativa, em silêncio quase absoluto – daqueles que aguardam a quebra, o rompimento – mas reinou por alguns segundos. O professor coçou o queixo, a cabeça e... – É melhor eu lhes contar uma história que já foi contada muitas vezes, em prosa, em verso e que vem rolando pelas estradas da vida deixando para trás tantas gerações que a ouviram e a recontaram. História não. Diz a história que é uma lenda, ou, diz a lenda que é uma estória. De qualquer forma, história ou lenda, o resultado será sempre uma sabedoria, faz parte do conjunto de saberes do mundo. As histórias, assim contadas, começam sempre iguais: era uma vez. Esta também. Era uma vez, numa terra muito, muito distante, num tempo muito, muito no passado, talvez lá da época em que os bichos falavam, lá no mundo do São Nunca, onde vivia Peter Pan e seus amigos, ou, próximo dele, tudo fruto de uma privilegiada imaginação que ninguém sabe de onde vem. Nessa terra tão longe, muito longe, havia um Reino onde vivia um Rei muito poderoso com sua família e sua corte, rodeado de súditos e muita riqueza. O Rei era um sábio e vivia a meditar, a filosofar sobre os grandes segredos, o desconhecido, aquele que a pessoa não vê, não ouve, não toca, mas sabe que está alojada em sua mente: era o grande tormento de sua majestade. Estava muito inquieto, nervoso, deverasmente furioso à ausência de respostas às suas conjecturas, soluções às questões de vida e morte, respostas às perguntas que fazia constantemente para si mesmo, fruto de profundas reflexões. Uma dessas questões era a seguinte: qual o segredo da humanidade? O Rei pensava, pensava, formulava hipóteses, teses, buscava respostas, soluções, contudo, nenhuma delas, nenhuma resposta encontrada o satisfazia, as conclusões a que chegava eram imperfeitas, não o agradavam. Resolveu, então, o Rei, mandar publicar um edital oferecendo um grande prêmio a qualquer sábio do reino ou de outro, que lhe respondesse apenas a pergunta: qual o segredo da humanidade?

O edital foi publicado. Atraídos pelo prêmio, de toda a região e de outras mais distantes, compareceram à entrevista com o Rei pessoas de muito conhecimento, filósofos, cientistas, pensadores, prosadores e poetas. Chegado o dia, postaram-se os pretendentes a oferecer suas respostas e, um a um, foram ouvidos pelo rei. Como já disse, o Rei era um sábio. Não seria qualquer resposta que lhe daria satisfação e pudesse considerá-la pronta e acabada. Muitos passaram pelo clivo do soberano sem o satisfazer. Depois de alguns dias à procura da resposta, andando pensativo a ruminar conhecimento e filosofia, meditando pelas ruas do reino, a um mendigo cego que lhe estendeu um rústico prato a suplicar-lhe uma esmola pelo amor de Deus, o Rei parou, voltou seus olhos e deu-lhe uma moeda de ouro. Ah! Obrigado meu senhor. Não é sempre que se ganha uma moeda de ouro. Ora, se sois cego, redargüiu o rei, como sabeis ser a moeda de ouro? É fácil, Majestade, respondeu o mendigo: pelo tilintar dela no prato. E por que me chamais de Majestade?, se não me vês? Por que somente os homens abençoados pela realeza falam como vós. Ante o diálogo mantido com o cego, resolveu o Rei questioná-lo: meu bom homem, a vida sob a claridade do sol já é tão complicada. Para vós que viveis na escuridão, dizei-me sinceramente, o que entendeis ser o segredo da humanidade? O cego, ainda saboreando o tilintar da moeda de ouro no prato, misturando sua imaginação com a realidade – a um só tempo, o barulho da moeda e o som da voz do Rei ao fazer-lhe a pergunta. Recolheu apressadamente a moeda, tateou-a entre os dedos, abriu um sorriso de felicidade e satisfação, e respondeu: sei que a moeda é de ouro, portanto boa e valiosa; sei também que vem do tesouro de meu Rei, por que sei que quem a depositou em meu humilde prato é o meu Senhor, o meu Rei. Contudo, em resposta à pergunta vos digo, majestade, em agradecimento à valiosa dádiva: o segredo da humanidade, meu senhor, consiste em o ser humano nascer, viver e morrer – completar, com dignidade, o ciclo da vida, tenha ele as nuances, a extensão que tiver. Só isso? Retrucou o Rei, ao se retirar murmurando: nascer, viver e morrer. Alguns passos à frente, o Rei retornou e, ao mendigo, novamente indagou: e qual é, para vós, a maior dificuldade do ser humano? Ora, ora, meu bom Senhor, respondeu sorrindo o mendigo: a maior dificuldade do ser humano está entre o primeiro e o terceiro verbo de minha resposta. Viver!, exclamou o Rei, sem conter a alegria. Viver, é certo, é justo, é perfeito, pois, a vida somente é compreendida quando olhamos para trás e, para ser vivida plenamente, temos sempre que olhar para frente; é quando se descobre a felicidade, deixa-se de ser vítima e torna-se autor de sua própria história. O ser humano descobre o oásis que tanto busca, dentro de sua própria alma.

DO TÍTULO

Ah! O título. Parece estranho. Esclareço.

Tive dois grandes amigos: um cão mestiço de Pastor Alemão com Husky Siberiano, de olhos acentuadamente azuis, chamado Rolff, e um grande amigo, jovem bastante estudioso chamado Edinho. A plumagem do cão era especial. A inteligência do Edinho era espetacular. Rolff adorava comer manga. Com o caroço na boca, jogava-o de um lado para o outro a demonstrar imensa alegria, grande satisfação que somente quem com ele convivia podia perceber. Comia várias outras frutas com a mesma satisfação. Sobre as patas traseiras, de pé, pegava pitangas vermelhas nos galhos para comer.

Edinho, que conheci há muito tempo e o tínhamos como hétero, adorava comer manga e dançar. Frequentava todos os bailes, dançava a noite toda - um pé de valsa - sempre rodeado de meninas, pretensas namoradas.

A grande semelhança entre o Rolff e o Edinho era o grande afeto que nos unia e os olhos azuis que ambos possuíam. O Título é uma homenagem ao meu amigo Rolff. Ao Edinho, também grande amigo, onde estiver, se estiver, a minha saudade, o meu enorme respeito.

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 01/11/2019
Código do texto: T6785009
Classificação de conteúdo: seguro