Paranoia delirante

Terceiro cigarro, pausa para um café.

Pergunto-me como cheguei ao ciclo vicioso do marasmo, e pergunto-me ainda o porquê de permanecer nele.

A casa está vazia, mas meus fantasmas transitam livremente entre os cômodos. Vez por outra me entregam o isqueiro responsável pelo fogo que se transforma em fumaça no meu pulmão.

Mando-os embora sempre que posso, mas eles desobedecem. Temo que sejam fantasmas adolescentes. Ora, ora... Acabam fazendo o que lhes dá na telha.

Olho para o notebook. Teclado cheio caracteres, cabeça cheia de dilemas. Tento escrever uma, duas, três linhas. Desisto.

O vício pede o quarto cigarro – dialogo com a angustia do peito – “tenha calma. Precisamos pôr o pé no freio”.

Precisamos, mas por hora ponho apenas o café na velha xícara das velhas manhãs felizes. O relógio da cozinha marca 23h59.

Volto à cama.

Em um minuto eles estarão de volta, os meus fantasmas. Há uma espécie de portal na madrugada. Há aqui, há aí também. E há ainda quem diga que isso é coisa de esquizofrênico, coisa que discordo totalmente. Meu laudo é TDAH, apenas. Nossa senhora da Ritalina que continue nos abençoando para todo sempre, amém.

O silêncio das paredes permanece, favorecendo uma ponte ao presságio da nostalgia que já começa a tornar-se possível. Aborto a saudade antes da formação do sistema nervoso. Se nada sente, nada dói. O cheiro forte do café inebria as ideias delirantes no passar das horas.

Olho novamente para o teclado. Nesse meio tempo, os fantasmas se reúnem ao meu redor. Rápidos, sagazes, numerosos.

Pergunto-lhes o motivo da reunião tardia. Eis que são muitos e agitam-se. Ouço todos, não ouço nenhum. Deixo que falem, murmurem, esbravejem as sentimentalidades.

Só assim relato o que me dizem. Nesses momentos, faço jus ao saudoso Chico Xavier no que diz respeito às "transcrições do além".

Apenas transcrevo. Já são 4 linhas. Agora são 15.

Uma lauda, duas laudas – “Calma, rapazes. Devagar!” – eles não sabem amenizar a carga psíquica das informações.

Devaneiam-se em utopias e queixas. Me falam sobre dores, amores... Sobre decepções, cárceres, medos, angústias. São fantasmas presos a ocorrências póstumas, e a mim cabe apenas ouvi-los.

Aos poucos, os "hóspedes" se afastam, como aqueles alcoólicos anônimos que após o desabafo proferem o “só por hoje” de todos os dias.

E finalmente, o quarto cigarro no quarto tão barulhento e silencioso.

Só por hoje.

O portal se reabre e alguns partem para outra dimensão. Outros insistem em ficar e por educação abrigo-os, ainda que contra a minha vontade. São fantasmas, mas não me assustam. Por serem tão jovens acabo levando-os comigo para os mais diversos lugares, e fora de casa eles ficam quietinhos na cabeça. Não me incomodam.

Madrugada adentro, a máquina digitadora de ideias, acesa em meia luz, indica o afazer da minha mente em estado de alerta e cafeína. Disserto, então, e chego à conclusão de que escrever é dar voz aos nossos fantasmas mais íntimos. Sou porta-voz do além-mar do meu peito de água e fogo.

Se a psicologia tomar conhecimento dessa façanha, aumentará minha dose de Ritalina. Valei-me, nossa senhora da psicofarmacologia!

O cristianismo possivelmente creditará a "loucura" à alguma ação demoníaca. Os céticos não darão importância a nenhuma palavra sequer. As variantes continuam, ainda assim escrevo.

E ao escrever, me reescrevo em várias vozes transformadas em algozes e réus do próprio discurso.

Somos muitos em um. Somos um em muitos.

Mais café, por favor.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 03/11/2019
Reeditado em 17/04/2020
Código do texto: T6785927
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