A Morte Bebe Champagne

A Morte é alguém que me fascina por sua total incapacidade de me chamar a atenção. Enquanto aqueles que comem hóstia ou enricam pastores com tendências silenciosa- ou abertamente fascistas estão o tempo todo pensando na Morte e um seu além, uma preocupação que rendeu toneladas de boas e sábias árvores derrubadas para produção de papel para gravar palavras não tão boas e sábias sobre uma utopia ou distopia após a vida terrena, eu, particularmente, como Heráclito de Éfeso ou o Andarilho inglês antigo, me sento na frente do fluxo das coisas e maravilhado as observo, como uma corrente de água que flui, admirado com a vida em si.

Observando comentários e textos pela internet fico me questionando sobre a ironia das coisas: Nos tempos antigos a Morte era uma força onipresente e onisciente, muito mais que qualquer divindade ou governo, com seu poder de invadir todas as vidas cedo ou tarde — mais frequentemente cedo do que tarde —, alguém de quem se fugia constantemente, mas que, como as testemunhas de Jeová, sempre bate à porta na hora mais inoportuna. Hoje ela é (in)conscientemente desejada, talvez não menos onipresente, o que qualquer comunidade indígena, favela, ou área fora dos grandes condomínios pode atestar. Mas ainda assim surgem grupos ou indivíduos que vivem privilegiadamente o suficiente para cultuar a Morte, por não ter que lidar com sua face mais cotidiana e comum que aqueles dentro dos playgrounds luxuosos nunca veem, como se ela fosse uma coisa legal por dar fim às vidas de muitos humanos que são seres realmente miseráveis, mas que mais comumente apenas discordam da opinião de nossos ardentes cultuadores da Morte.

Isso me traz incomodamente à memória leituras adolescentes de um Nietzsche que fala da décadence da sociedade ocidental, sintomatizada especialmente pela filosofia pessimista schopenhaueriana e o desejo de desaparecimento, de niilificação do budismo que tinham grande influência na sociedade europeia da sua época. Mas eu penso que o que o astuto, mas recalcadamente misógino Nietzsche talvez não previsse é que esse culto da Morte fosse um fenômeno que iria encontrar respaldo dentro do próprio cristianismo décadas mais tarde e em toda filosofia, religião ou espiritualidade ocidental, como um vírus que se infesta por um organismo doente, aproveitando-se de toda vantagem que possa obter de seu hospedeiro. Freud, que viveu no período de ascensão do nazismo alemão e assim testemunhou mais barbaridades a que a insatisfação cômoda das classes médias e altas alemãs que assistiam as óperas do antissemita Wagner eram capazes de realizar, dá-me sinais de ter mais claro em sua mente essa vontade irracionalmente incontrolável pela Morte do ocidental ao falar das duas pulsões básicas da mente europeia, eros, que dá o desejo de viver, e thanatos, que, ao contrário, incita à Morte.

A fascinação e o culto da Morte então, como dois irmãos gêmeos, são fenômenos que, andando alegremente lado a lado, juntaram-se com a colonização europeia, e saem ensinando para as pessoas confinadas espiritualmente pelo cristianismo e/ou fisicamente pelas cidades a falsa ideia de que esse é o “modo de ser do homem”. Não é atoa que povos indígenas como os Kaapor, por exemplo, chamem esses seres estranhos e conflitantes que são os humanos ocidentais, pelo termo desconfiado de karaí, que significa seres que com suas peles pálidas e seu desejo de destruir tudo, inclusive a si mesmos, envenenam a comida, destroem florestas, esmagam os locais de repouso dos sagrados ancestrais dessa terra chamada América.

A Morte é pop, seja na sua face comum de Grim Reaper, o esqueleto coberto com um manto negro e uma enorme foice, ou na imagem menos comum, mas ainda assim bastante conhecida em algumas subculturas, de um ser com metade viva e metade morta, como retratada nas palavras do manual de poesia do islandês Snorri Sturluson. No começo dessa conversa eu disse que a Morte me fascina por sua total incapacidade de despertar interesse nela. Mas eu menti. Não é apenas isso, existe também minha admiração perante o fato de que as pessoas sentem-se atraídas pela Morte, que elas desejam e movem-se para isso, embora não admitam para si mesmas. Um grande exemplo onde vejo isso é a forma em que as valquírias passam de seres bestiais nos tempos antigos, mulheres terríveis e poderosas que teciam o destino com tripas humanas, para donzelas inocentes que podem ser capturadas por homens em lagos e lhes servir de anjos da guarda. É uma metáfora bastante centrada na psicologia de homens brancos — os que detinham o poder da escrita de tais lendas — de como eles são capazes de domar o que mais lhes assusta, isto é, mulheres livres, e as transformar em serviçais.

Mas a Morte também me intriga porque ela está em todos os lugares, lhes demos um livre acesso a tudo, e em todos os locais ela é bem-vinda. No seu pão com Nutella fruto de exploração infantil, no açúcar que é fruto de exploração de trabalho no campo, no silenciamento de discussões sobre violência, no gabinete da presidência. A Morte nos rodeia a todo o momento, tudo que é mais caro à sociedade ocidental é feito sobre a Morte, morte de humanos nativos, de animais e plantas silvestres, de rios, de montes que por eras sorriram sagrados tocando as nuvens. A Morte está na joia em nossos pescoços feita com ouro extraído de terras Yanomami e que contamina rios e humanos com mercúrio, e mesmo nos computadores que usamos. O humano ocidental não apenas se rodeia de coisas mortas que são tecnologicamente trabalhadas, nós matamos diversas pessoas, humanas ou não, para produzir essas coisas.

A Morte tornou-se parte de nós, e isso não me soa bom. Vários sistemas filosóficos ou esotéricos, e mesmo o cristianismo, abordam consciente ou inconscientemente a aceitação da Morte, seja como inevitabilidade, seja como uma parte de nós. Eu ando um pouco enfadado disso e acredito que devemos declarar guerra à Morte. Precisamos voltar a aceitar a Vida, o mundo vivo, as terras, árvores, rios e montes vivos, e parar de enxergar essa coisa um tanto obcecada e definhada que é a mente ocidental como forma superior, ou mesmo única, de Vida. Se o desafio das espiritualidades ocidentais foi fazer o homem casar-se com a Morte e passar para o nome dela todas as nossas posses, a Vida vem lutando, como mãe abandonada e piedosa, para colocar alguma coisa nas cabeças gananciosas dos ocidentais antes que sua inimiga nos dê o beijo fatal.

Uma profunda azia me sobe ao pensar isso, e ela fica ainda pior por lembrar que a maioria das pessoas não se incomoda. Naturalizamos a morte do outro, e transformamos em outro tudo aquilo que estamos com preguiça demais para considerarmos como parte de um “nós”. É morbidamente engraçado como correntes se espalham pela internet, e como elas, no fim das contas, não ajudam a terceiros, mas somente causam piedade ou ódio em um grande número de curtidas e comentários. E isso numa gama bastante fingida de temas, é aquele sem as pernas que é pedreiro, é a criança cronicamente doente ou mutilada que sorri, é um jogo de sofrimento no qual o cristão se sente bem com a própria dor se souber que alguém sofre mais que ele. E não se esqueça de deixar o seu “Amém”.

Como um pensador heathen e um heathen pensador eu sempre fico me questionando sobre essas coisas, elas parecem menores e sem importância, mas definitivamente não o são. A nossa sociedade vem engolindo diversas cosmovisões e maneiras de enxergar o mundo, e eu mesmo sou uma pessoa que tive meus ancestrais, indígenas e negros, devorados por isso, o que defecou gerações de cristãos como produto. Isso até que decidi recuperar raízes e dar um basta, de alguma forma. Em diversos povos que ainda existem nessa terra chamada Brasil, várias outras maneiras de interpretar a realidade, em paradigmas bastante distantes cotidianamente me ensinam o quanto a mentalidade urbana tem sido pequena e contraditória, apesar de seu poderio ideológico e militar. E estamos suprimindo essas respostas ao mundo que envolvem pensamentos muito distantes dessa luta interna de thanatos contra eros do mundo ocidental, simplesmente porque temos aplicado inteligência demais nas coisas que usamos e de menos em nós mesmos. E enquanto isso a Morte sorri e bebe champagne, ouvindo jazz na escuridão em que espera o último humano após o fratricídio completo da humanidade.

Seaxdeor
Enviado por Seaxdeor em 04/11/2019
Código do texto: T6787326
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.