Adil Pedro Turbay

Capítulo 05

Adil Pedro Turbay

Para contar esta história, preciso dizer algo sobre um tio meu, que era ímpar: Adil. Tinha os cabelos loiros, numa época, região e família de morenos. Puxou para um lado mais branco da árvore genealógica. Tinha sim. Era engraçado, não corpulento, nem alto. Portanto, mais ao nível de nossos olhos de crianças. À época, é como se fosse um guri mais velho um pouco que nós. Eu já chegara aos 4 anos. Para mim, ele era um garotão, um gurizão, que inclusive, brincava, ria e conversava conosco. Dizia para minha mãe, quando, jovem que era, precisava de dinheiro: “Minha irmã, tutu na mão do menino”. Kkkk. Minha mãe ria e jogava-lhe algum.

Ele tinha um eterno bom humor, e nunca se furtava a uma brincadeira, a uma pegadinha, um truque surpreendente. Sim, que adulto diferente. Há, há, há. Um dia, inesquecível, ele puxou a fumaça de um cigarro para o pulmão. Entrou na sala. O olhar de todas as crianças se fixaram nele, porque ele era assim. Chamava a atenção. Vai daí, que pôs o cigarro no ouvido. Surpresa geral. Maior surpresa ainda. Ele soltou a fumaça pela boca, como se tivesse fumado pela orelha. Este era meu tio. A criançada quase se partia em gargalhadas. Digo, ainda, em defesa dele, que aquele foi um hábito juvenil. Quando atingiu mais idade, mais maduro, abandonou para sempre o tabaco, a fumaça, e as estripulias tabagistas.

Porém, nesta narrativa, vou pedir agora um pouco de atenção e solenidade. O tio era engraçado, alegre, folgazão. Porém, quero relatar aqui algo que, para mim, nunca deixará que fuja do meu coração o respeito e gratidão a ele. Eu era uma criança apenas, quatro anos me define isto. Vivia em um mundo de sonhos. Como dizia Mark Twain: “Há coisas que só as crianças podem lembrar. Ao crescerem, a vida perde de tal maneira o encanto, que em se lhes contando não acreditariam em suas peripécias, em suas peraltices”. É uma citação livre, mas creio que fiel ao pensamento do nosso escritor do Mississipi. Lembro, lembro, lembro: O alto falante do cine São Luiz tocava músicas pela Terra Boa sonolenta, nos sábados de manhã. Eu as ouvia e cantava de novo depois. “Quero beijar-te as mões, minha querida”. Anísio Silva era o cantor. Os cantores, então, usavam terno e gravata, roupas sóbrias. Minha querida mãe consertava: “Mãos, Jeferson, mãos’.

Se existe um santuário de ideias que são secretas e só percebidas por uma criança, porque exclusivas a elas e vedadas aos adultos, uma se me escapou e veio comigo para as quadras adultas da existência. Amparo-a em meu peito como sagrada. Escapuliu. Devia ter-se dissipado com as agruras que permeiam o entardecer da vida humana, mas não o fez. Crianças não sofrem nada ao morrer. Sim, senhoras, sim, senhores. Crianças não sofrem como os adultos sofrem ao morrer. Crianças tenras, eu quero dizer.

Aos incrédulos, aos que Nelson Rodrigues chamaria de idiotas da objetividade, explico. Sábado de manhã, belo, ensolarado (a narrativa não vai se perder pelo clichê, continue a ler), meu pai, minha mãe Alanir, o tio Adil, irmão dela, eu e a Maria (minha irmã, com um ano a menos que eu) fomos que fomos para a Fazenda Marília – aquele pedacinho do paraíso. Economizo detalhes em função da importância dos fatos. Uma bela piscina brilhava ao sol maravilhoso do nosso norte do Paraná. Três horas da tarde. Eu e minha irmã saímos correndo do Jeep. Os adultos se distraíram um pouco. Pronto, nós dois nos lançamos às límpidas, porém profundas, águas. Crianças! Não descuidem das crianças.

Lembro perfeitamente, 59 anos depois. Eu via a água, algumas bolhas se formando e o sol colorido penetrando as águas. Tive um pouco de surpresa, mas não medo nem pavor. Eu descia, eu subia. E as águas faziam uma espécie de som, quase de natureza visual, se posso dizer isto. Buru buru buru. E aquela luz ampla, estonteante, do sol. Outro detalhe que lembro muito perfeitamente – os cabelos encaracolados da Maria, clarinhos, loirinhos, passando ao meu lado – se despedindo de mim em movimentos vivos. Nenhum medo, nenhum pavor, nenhuma agonia. Um pouquinho de surpresa. Que coisa diferente! Um teólogo disse que a morte é um fato natural (Invideo quia quiescunt – Invejo os que descansam). Acredito nele. Quando amadurecemos, a aparelhagem, o séquito da morte vem nos assombrar. E se aproveita de nossas angústias existenciais, fraquezas, e pouco conhecimento para nos manter prisioneiros daquilo que o patriarca Jó dizia ser “o rei dos terrores”. Eu estava morrendo afogado sem perceber. Um detalhe apenas: a luz ia ficando cada vez mais forte; forte não, clara.

Vamos a um epílogo. O tio Adil pulou na piscina. Ele tinha visto dois cabelinhos encaracolados, loirinhos (na época) subindo, descendo, subindo, descendo. Puxou-nos a ambos. Salvou nossas vidas. O céu ia esperar.

Obrigado, tio Adil.