O pai da paciência

O polegar aquiescente erguia-se num sinal de positivo perante qualquer solicitação. O gesto vinha sempre acompanhado de um sorriso espontâneo, carregado de mansuetude, de que a vivacidade dos olhos tirava qualquer traço de estupidez, característica que costuma ornar a fisionomia dos risões. A atitude positiva que sempre vinha a seguir confirmava a genuinidade do gesto. Repetia com frequência uma frase bíblica com que pretendia dizer que fora generosamente agraciado com as bênçãos do alto: “a quem tem, mais será dado”. Eu nunca entendia o que aquilo queria dizer, até porque, a meu ver, a miséria o cercava de todos os lados. Parecia-me que quanto mais ele servia, menos reconhecimento tinha fosse dos homens, fosse de Deus.

Via-o na sua luta diária em defesa do mísero salário que não dava para a manutenção da família, que por sua vez, queixava-se de não ter um provedor mais capaz. Para se consolar de tantos reveses ele tinha sua própria filosofia: “os homens esperam resultados, Deus se satisfaz com o nosso esforço”. E seguia se esforçando. Dando seu exemplo de cidadão honrado, trabalhador incansável e pai de família extremoso. Eu acompanhava sua saga desacorçoado. Tentando descobrir de onde tirava tanta força e resistência para prosseguir numa existência tão insossa. Quando os filhos cresceram e o peso das responsabilidades parecia se abrandar, e foi quando pensei que a vida finalmente começaria a lhe dar algum retorno, principiaram-lhe os achaques decorrentes da idade e dos esforços excessivos.

Buscando entender o que as escrituras queriam dizer com “a quem tem, mais será dado”, cheguei a pensar que talvez se referissem ao sofrimento. Pelo menos naquele sujeito que passou a vida apregoando aquela sua verdade, era essa a situação que se apresentava. Como seria possível que um homem pudesse viver só para servir e ser recompensado com a enfermidade? Contudo, mesmo quando um acidente vascular cerebral lhe tirou qualquer outra possibilidade de comunicação, permaneceu a aquiescência do polegar e também a naturalidade do sorriso de que o brilho dos olhos tomava parte. O gesto agora afirmava que estava tudo bem e que ele estava feliz. Foi então que percebi a que se referia o chavão bíblico naquele caso específico: paciência.

Paciência foi a chave da sua paz. A palavrinha vinda do Latim patientia, de pati, “sofrer, agüentar”, de uma raiz Indo-Europeia pei-, “ferir, causar dano” tem por sinônimos: resistência, submissão, indulgência, resiliência, humildade, fleuma, placidez, impassibilidade, mansidão e, entre outros, muitos outros, pacificidade. Era esse o seu grande segredo.

Naquela tarde de setembro, quando depois de um longo dia de sol começava uma chuva mansa e o cheiro de terra molhada invadia a casa trazendo uma saudação da primavera que estava às portas, ainda foi o sinal de positivo seu último aceno para mim. O polegar aquiescente, o sorrido fácil, o brilho no olhar. Essa é sua última imagem registrada em minha memória. A sua última lição. O segredo da paz. Paciência, a quem tem, mais será dada.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 22/11/2019
Reeditado em 22/11/2019
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